Começo por agradecer à Associação Sindical dos Juízes Portugueses e à Associação Europeia de Juízes, nas pessoas dos seus Presidentes, o convite para participar nesta Conferência Internacional sobre Integridade Judicial.
Dirijo uma saudação a todos os participantes e uma saudação especial aos delegados da Associação Europeia de Juízes.
É uma honra estar aqui hoje, no Salão Nobre do Tribunal da Relação do Porto, nesta sessão solene de abertura de uma conferência em que se vai refletir sobre a integridade judicial, o fortalecimento da transparência e a confiança na justiça.
Um tema tão amplo permite abordagens sob variados ângulos, mas isso ficará naturalmente a cargo dos ilustres conferencistas.
Limitar-me-ei a lançar alguns tópicos, a partir da realidade portuguesa.
Um sistema judicial baseado nos princípios da independência,
imparcialidade, integridade e transparência é fundamental para manter a confiança dos cidadãos e assegurar a realização do Estado de Direito democrático.
A confiança dos cidadãos no sistema de justiça é um dos principais indicadores da qualidade da democracia.
Nas democracias consolidadas, os sistemas de justiça contêm estruturas regulatórias e complexos normativos que asseguram padrões de grande confiabilidade na atuação funcional dos diversos operadores.
Mas não podemos esquecer que a medição dos níveis de confiança assenta fundamentalmente na perceção que os cidadãos têm sobre a forma como o sistema de justiça funciona.
Após anos consecutivos a subir, a confiança dos portugueses no sistema de justiça tem vindo a baixar, situando-se atualmente no limiar dos 40%.
Podendo essa perceção resultar de diversas variáveis, é possível, no entanto, atribuir uma grande parte da percentagem da queda nos níveis de confiança dos cidadãos portugueses a condutas de alguns magistrados nos últimos anos, e também ao impacto negativo na opinião pública da forma como decorrem alguns processos criminais mais complexos envolvendo figuras públicas.
Como se pode recuperar a confiança?
Podem os juízes fazer mais e melhor?
A confiança dos cidadãos nos juízes depende muito da forma como estes agem no plano funcional, mas também da forma como se comportam e interagem socialmente.
No primeiro plano (o funcional), o estatuto dos magistrados judiciais contém o mapa dos direitos e deveres do juiz; no plano da vida privada ou social do juiz, o Compromisso Ético dos Juízes Portugueses elaborado em 2009, no capítulo dedicado à integridade, constitui uma espécie de guia ético da atuação extrafuncional do juiz que deve ser constantemente revisitado.
De facto, a integridade do juiz assume um papel destacado na avaliação da atividade judicativa.
Visando garantir a integridade judicial existem regras para garantir a imparcialidade. Refiro-me, em particular, aos incidentes de escusa e de suspeição, que constituem mecanismos muito eficientes para garantir a independência externa dos juízes.
Todavia, quando se trata da independência e imparcialidade dos juízes, a questão não se resume às garantias de imparcialidade positivada na lei, estendendo-se à aparência dessa imparcialidade pelas partes e pelo público em geral.
A independência e a imparcialidade do juiz devem ser ‘lidas’ e percecionadas por todos sem deixar dúvidas a ninguém.
É através de uma conduta exemplar, discreta, reta, socialmente irrepreensível e desligada de quaisquer interesses políticos, económicos ou financeiros que os sinais de independência e imparcialidade são captados pela comunidade.
Nesta linha, ainda há dias defendi publicamente que os magistrados judiciais que, em determinado momento das suas vidas optem pela carreira política, não devem poder regressar à judicatura.
O fim das ‘revolving doors’ trará mais transparência à Justiça.
Contra ventos cada vez mais fortes e marés cada vez mais revoltas, empenhar-me-ei na luta por esse objetivo, o que implicará, pelo menos, a indispensável alteração do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
Mas a par desses fatores ligados ao aspeto funcional do juiz ou ao modo como se relaciona e comporta socialmente, concorrem outros que lhe são exteriores, que escapam ao seu controlo.
Se, por exemplo, as leis processuais tiverem um peso demasiado burocrático na economia do processo não se pode contar nem com celeridade nem com eficácia. E faltando estas, a confiança dos cidadãos na Justiça nunca será elevada.
Sem pretender desviar a atenção do que disse sobre a integridade do juiz, suponho que a confiança dos cidadãos no sistema de Justiça dependerá, numa boa parte, do modo como a Justiça é administrada nos tribunais e do modo como é transmitida aos cidadãos.
Entendo, por exemplo, que um outro modelo de elaboração das decisões judiciais pode contribuir para melhorar a imagem da justiça e a confiança dos cidadãos.
Vivemos no século XXI, mas a forma como se escrevem muitas sentenças e acórdãos em Portugal não acompanha os tempos modernos: fraseologia complexa, eruditismo, considerações sociológicas, filosóficas e outras, tudo numa amálgama que torna aquilo que deveria ser facilmente apreensível num quebra- -cabeças.
Sabemos que o processo de avaliação do desempenho dos juízes para progressão na carreira poderá induzir esse tipo de comportamentos.
Sabemos também que as técnicas de copy paste os facilitam.
É importante, no entanto, deixar aqui sublinhado que a avaliação do desempenho para efeitos de progressão na carreira tende a valorizar, sobretudo, o exercício funcional eficaz e expedito, constituído por decisões fundamentadas, na medida do estritamente necessário, e substantivamente justas.
Decisões em que se empregue linguagem clara, não obstante a indispensável tecnicidade jurídica, e em que se simplifique o discurso argumentativo.
Invoco, neste ponto, Maria Lúcia Lepecki, professora, ensaísta e crítica literária que, reproduzindo um outro autor brasileiro, dizia com ironia:
“Se podemos complicar com tanta facilidade, para quê simplificar com tanta dificuldade?”
Poderá consumir-se mais tempo na escolha das palavras e no trabalho de síntese, mas só assim a decisão judicial se torna compreensível e assimilável pelo destinatário.
A forma como a Justiça comunica com a sociedade é outro fator que pode influenciar a perceção da confiança no sistema judicial.
Têm-se feito alguns avanços, nomeadamente através da criação de Gabinetes de Imprensa, mas há ainda muito a melhorar, embora reconheça que é muito difícil estabelecer um ponto de equilíbrio entre os interesses a prosseguir pelos órgãos da Justiça e os da comunicação social.
A publicação de todas as decisões judiciais em plataformas digitais de consulta livre é outro dos aspetos que deve continuar a merecer atenção, na medida em que permite um escrutínio mais efetivo sobre o funcionamento dos tribunais.
Enfim, uma maior transparência favorecerá a compreensão da atividade dos juízes e dos tribunais, aumentando os níveis de confiança da comunidade no sistema de Justiça.
Espero que nesta conferência se encontrem as melhores soluções para que se alcancem esses objetivos.
Votos de bom trabalho!
Porto, 28 de abril de 2022
Henrique Araújo, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
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