Ex.ª Senhora Vice- Reitora da Universidade do Porto
Ex.º Senhor Diretor da Faculdade de Direito do Porto
Exº Senhor Presidente da Associação de Estudantes da FDUP
Ilustres Convidados
Minhas Senhoras e Meus Senhores
É grande a honra que sinto em estar aqui hoje, no dia em que se celebra o dia da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.
Agradeço ao Senhor Professor Paulo de Tarso Domingues, Ilustre Diretor desta Faculdade, o convite que me formulou, e permita que, na pessoa de V.ª Ex.ª, saúde todo o Corpo Docente e todos os Alunos desta prestigiadíssima instituição académica.
Há cinco anos, por ocasião de idêntica celebração, elegi como tema o “Estado da Justiça”.
Nessa oportunidade, descrevi os tempos médios das decisões dos tribunais comuns, sinalizei os aspetos que, em meu entender, constituíam obstáculos a uma justiça mais pronta, apontei deficiências ao sistema de organização dos tribunais e defendi a alteração de quadros punitivos em alguns ilícitos penais relacionados com a criminalidade económica e financeira.
Havia, então, a esperança de que o repto lançado, pouco tempo antes, pelo Senhor Presidente da República, pudesse dar frutos. Infelizmente, o apelo a um ‘Pacto para a Justiça’ não passou de uma intenção sem consequências.
A dificuldade, diria mesmo, a incapacidade de se conseguirem consensos nesta área fundamental da vida coletiva não pode deixar de causar perplexidade. Perante essa incapacidade, e como tenho salientado em diversos momentos, caberá aos órgãos de soberania a quem está cometida competência legislativa a iniciativa de produzir as alterações indispensáveis ao melhor funcionamento do sistema judicial.
Contudo, como se tem visto, em Portugal continua a navegar-se com a lanterna à popa. Quando, finalmente, se intervém o contexto já se mostra alterado, o que redunda em sistemático atraso na resolução dos problemas.
Hoje, o tema que trago para reflexão é o Estado e a Justiça.
Embora com evidente aproximação fonética ao tema de 2016, a substância semântica é totalmente diferente.
O Estado de Direito Democrático pressupõe a garantia da separação entre o poder judicial, por um lado, e os poderes executivo e legislativo, por outro.
A separação do poder judicial dos outros poderes do Estado só é efetiva se os tribunais (órgãos de soberania) e os juízes (seus titulares) forem independentes, tal como prescrito no artigo 203º da Constituição.
A independência dos juízes manifesta-se externa e internamente.
A independência externa significa, em primeiro lugar, que os tribunais e os juízes decidem livremente, ou seja, não sofrem influências nem recebem ordens ou instruções dos outros poderes do Estado. Digamos que este significado da independência é diretamente político, na medida em que decorre do princípio básico da separação de poderes no Estado de Direito democrático.
Não se esgota neste campo a independência externa. Os tribunais e os juízes devem também estar a coberto de quaisquer condicionamentos ou pressões de outros poderes de facto, como partidos políticos, grupos económicos, lobbies, órgãos de comunicação social, etc.
A independência interna, por seu turno, concretiza-se na confluência de vários caminhos. Desde logo, a sujeição do juiz a um regime de exercício exclusivo à função jurisdicional e a um conjunto de regras que asseguram a independência do juiz face aos interesses em litígio, envolvendo um sistema de expedientes processuais que conferem a certeza de imparcialidade da decisão (refiro-me aos impedimentos, escusas e recusas).
A inamovibilidade e a irresponsabilidade dos juízes constituem, igualmente, garantias tradicionalmente associadas a este vetor da independência.
– artigo 216º da Constituição.
Finalmente, a independência interna é também resultado da sujeição funcional do juiz a um órgão de gestão e disciplina que não depende do poder executivo, o Conselho Superior da Magistratura.
Como tem sido proclamado em várias instâncias internacionais ligadas à Justiça, a independência do poder judicial e a independência e imparcialidade dos juízes é condição prévia e necessária à garantia dos direitos fundamentais.
Não obstante a aceitação generalizada deste princípio, os últimos tempos têm trazido notícias preocupantes.
Sucedem-se as ameaças e os ataques à independência do poder judicial em vários países da União Europeia, como Bulgária, Croácia, Eslovénia, Espanha, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, República Checa, Polónia e Roménia.
Na maioria dos casos essas investidas são feitas através da alteração das leis de organização judiciária, designadamente a reconfiguração do órgão de gestão e disciplina dos juízes, ou seja, o Conselho Superior da Magistratura de cada um desses países, mas também ocorrem mediante o reforço das competências e presença do poder político nas estruturas judiciárias.
Vou referir-me apenas às situações mais problemáticas, que afetam os sistemas judiciais da Hungria e da Polónia.
É nestes dois países que a independência do poder judicial tem sofrido maiores ataques diretos por parte do poder político.
Veja-se o caso da Hungria:
No decurso de um processo iniciado em 2012, o partido do governo, beneficiando da maioria qualificadíssima que ainda detém, começou por enfraquecer o Conselho Superior da Magistratura húngaro, através de algumas medidas, de que destaco:
– O estabelecimento de uma idade máxima para o exercício de funções por parte dos juízes, destinada a afastar, sob a aparência de um privilégio, os juízes mais incómodos com assento no Conselho Superior da Magistratura;
– A criação de um órgão nacional autónomo de administração da justiça, presidido por um juiz, mas de nomeação marcadamente política, ao qual passaram a competir decisões da maior importância para a gestão da magistratura judicial e relativamente a cuja atividade o Conselho Superior da Magistratura nada pode opor.
Por outro lado, conferiu-se aos Juízes Presidentes húngaros uma enorme influência na atividade dos magistrados judiciais, nomeadamente: exercício da ação disciplinar contra juízes; capacidade de influenciar o valor da remuneração dos juízes em função da quantidade de trabalho atribuída e da colocação em determinados tribunais; avaliação dos juízes; e distribuição de processos concretos a determinados juízes.
O processo de nomeação destes Juízes Presidentes obedece a critérios rígidos fixados na lei, mas o Presidente do acima referido órgão nacional autónomo de administração da justiça passou a adotar o procedimento de anular os processos de seleção dos Juízes Presidentes, nomeando para o cargo, ainda que interinamente, Presidentes da sua confiança, os quais, a partir do início das suas funções, passaram a exercer pressões e a atuar no sentido de influenciar os termos do processo definitivo de seleção.
Tal realidade originou fortes restrições à independência dos Juízes, passando os juízes incómodos a ser alvo de instauração de processos disciplinares, de transferências indevidas para outros tribunais e de distribuição de processos sem observância de critérios de aleatoriedade e equidade.
Tudo isto com a voluntariosa ajuda da comunicação social húngara, tendencialmente favorável ao governo, que passou a promover campanhas destinadas a apoiar as opções políticas do partido no poder, corrompendo a opinião pública húngara quanto à atividade dos tribunais e à competência do Conselho Superior da Magistratura.
Como se não bastasse, em 5 de outubro de 2020, o Presidente da República propôs a nomeação para Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de um então Juiz do Tribunal Constitucional, que, não só nunca havia sido juiz de carreira, como fora Vice-Procurador Geral da República do Procurador-Geral da República com fortes ligações ao partido do Governo.
Apesar da oposição do Conselho Superior da Magistratura húngaro a esta decisão, o Parlamento nacional acolheu a nomeação proposta pelo Presidente da República e elegeu a pessoa em causa para um mandato de nove anos, com início em janeiro de 2022.
A realidade húngara tem vindo a ser pública e reiteradamente censurada pelos organismos internacionais ligados à justiça e intensamente criticada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.
O caso da Polónia consegue ser ainda mais grave.
O governo polaco iniciou, em 2015, uma profunda reforma da justiça, com a promulgação de cerca de três dezenas de leis que reformularam todo o sistema judicial.
Entre outras, foram adotadas as seguintes medidas:
O Conselho Superior da Magistratura passou a propor ao Presidente da República candidatos para o Supremo Tribunal de Justiça sem possibilidade de recurso a meios jurisdicionais de fiscalização da decisão.
Foi criada, no âmbito do Supremo Tribunal de Justiça, uma Secção Disciplinar dos Juízes que não oferece quaisquer garantias de imparcialidade e de independência, estando, como está, sob influência direta ou indireta do governo e do próprio parlamento.
Esta Secção disciplinar, ou Câmara Disciplinar, passou a tomar decisões contra juízes concretos, nomeadamente no sentido do levantamento da respetiva imunidade e da sua detenção, a fim de serem sujeitos a processos penais, além de determinar a suspensão temporária de funções ou mesmo reduções de vencimento.
A lei polaca proibiu também os tribunais polacos de aplicarem diretamente o direito da União Europeia e de suscitarem perante o Tribunal de Justiça da União Europeia reenvios prejudiciais, inscrevendo no leque dos ilícitos disciplinares a ação de um qualquer juiz que contrarie essa proibição.
Some-se a isto o seguinte:
– O Tribunal Constitucional, cuja composição tem um pendor fortemente favorável ao partido no governo, decidiu recentemente, contra toda aquela que é a jurisprudência uniforme do Tribunal de Justiça da União Europeia, seguida por todos os tribunais nacionais da União Europeia, pela exclusão do princípio do primado do direito da União Europeia.
– O Conselho Nacional da Magistratura polaco é constituído essencialmente por membros nomeados pelo poder político.
– O Supremo Tribunal de Justiça foi recentemente objeto de regulamentação através de novos diplomas legais, que, além do mais, estabeleceram a redução do quorum necessário para que os Juízes “Conselheiros” nomeiem o Presidente da Secção e previram que o Presidente da República possa proceder a tal nomeação caso o quorum exigido não seja alcançado.
– A atual Presidente do Supremo Tribunal, nomeada de acordo com as regras recentemente instituídas, limitou o direito de acesso a documentos e propôs que os juízes do Supremo Tribunal que tivessem suscitado reenvios prejudiciais fossem afastados de certos processos.
– Inúmeros Juízes polacos estão suspensos e, por outro lado, sujeitos a obrigações que representam uma significativa ingerência nas suas vidas pessoais. Estão obrigados a divulgar informações como a filiação em associações, o exercício de funções em organizações sem fins lucrativos, a filiação em partidos políticos e o desempenho de cargos ocupados nesses partidos antes de 29 de dezembro de 1989. Os Juízes polacos estão, também, impedidos de se pronunciarem sobre a legalidade das nomeações e promoções judiciais.
– O cargo de Ministro da Justiça polaco e o de Procurador-Geral da República são exercidos pela mesma pessoa, facto que, além de se refletir na degradação da autonomia do Ministério Público, reflete-se indiretamente na atividade dos Juízes. A título de exemplo, quando um Procurador reage em tribunal relativamente a uma transferência que considerou ilícita, os Juízes a quem são distribuídos os processos são convocados pelo Ministério Público como testemunhas em inquéritos penais, assim ficando impedidos de julgar as causas.
São tantos e tão graves os ataques à independência do poder judicial na Polónia que o Tribunal de Justiça da União Europeia condenou esse país, no passado dia 26 de outubro, a pagar à Comissão Europeia uma sanção pecuniária compulsória diária de milhão de euros, por não ter acatado as medidas provisórias, decretadas em julho, para suspensão da Câmara Disciplinar instalada no Supremo Tribunal.
Excelências
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Os princípios estruturantes do Estado de Direito, no quadro da União Europeia, compreendem a legalidade, a segurança jurídica, a proibição da arbitrariedade dos poderes executivos, a existência de tribunais independentes e imparciais, a fiscalização jurisdicional efetiva e a igualdade perante a lei.
Se em certa medida nos podemos sentir protegidos pelas normas do Tratado da União e pelas instâncias da comunidade europeia que zelam pela observância e aplicação destes princípios, há uma pergunta que se impõe fazer.
Como foi possível chegar-se até aqui no seio da própria União Europeia?
A resposta não se afigura fácil nem linear.
Não haverá, seguramente, uma única razão para este retrocesso, mas antes um conjunto de fatores de natureza política e sociológica que não me arrisco a enunciar nesta alocução.
Duas certezas se podem, no entanto, extrair: a primeira é a de que foi o poder político quem promoveu estas alterações no quadro do funcionamento dos tribunais e dos órgãos que tutelam o exercício funcional dos juízes; a segunda, é a de que essas alterações visaram instrumentalizar o poder judicial colocando-o sob controlo do poder político.
Na semana passada, decorreu em Lisboa uma conferência em que se discutiu o Estado de Direito na Europa.
Tive a oportunidade de assistir à intervenção de Adam Bodnar, advogado e professor da Universidade de Ciências Sociais e Humanas de Varsóvia, que corajosamente descreveu todo o processo que, desde 2015, se desenvolveu na Polónia até se concretizarem as reformas agora reprovadas pela Comissão Europeia.
Esse orador referiu que, sob a argumentação da necessidade de o poder judicial ter de prestar contas à sociedade (a famosa accountability ou responsividade), o poder político, através de uma fortíssima campanha propagandística nos meios de comunicação social, conseguiu convencer os cidadãos de que era chegado o momento de se realizar uma reforma na justiça. Contando com expressivo apoio da população, o poder político da Polónia iniciou uma revolução judiciária colocando os juízes e os tribunais sob seu completo controlo.
A forma insidiosa como se alcançou, no caso da Polónia, o objetivo político de controlo do sistema judicial deverá constituir um sério alerta para outros países, inclusive para Portugal.
Também por cá temos ouvido alguns protagonistas da vida política com discursos semelhantes. O que lhes falta em profundidade de análise e conhecimento sobra-lhes em talento demagógico.
Dizia um ensaísta francês que a Política é a História a fazer-se.
Sinto que, às vezes, não se tem perfeita consciência dessa responsabilidade e reduz-se a discussão de temas tão importantes como a Justiça a um conjunto de declarações avulsas, sem regra e sem contexto.
A sociedade civil tem de estar atenta a estes sinais e precavida contra o perigo de fragilização da independência dos tribunais.
Neste sentido, o papel que as academias, as magistraturas, a advocacia e todas as restantes componentes da comunidade jurídica puderem jogar serão certamente em benefício da manutenção do Estado de Direito democrático e da garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Concluo, desejando os maiores êxitos à Faculdade de Direito da Universidade do Porto e fazendo votos de que se mantenha como referência na qualidade do ensino do Direito em Portugal.
Porto, 15 de dezembro de 2021
Henrique Araújo, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
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