Por mim, e em representação dos juízes portugueses, quero dizer-vos da imensa satisfação da vossa presença e agradecer o benefício da vossa reflexão, que constituirá sempre referência que marca os caminhos que caminhamos em conjunto e em convergência da realização de objectivos comuns.
Todos o sabemos: os próximos tempos vão ser de enormes desafios, com riscos que ameaçam a União.
Juízes, académicos e advogados participam neste exercício do mais elevado prestígio, num tempo que nos foi dado viver de uma – mais uma – grande encruzilhada europeia: o tema geral do Congresso é Europa at the crossroads, que exige rasgo, capacidade e génio nas escolhas complexas, regresso às culturas fundadoras e a graça da acção iluminada por uma visão estratégica do tempo longo contra as contingências sem futuro do tempo breve.
A protecção e o respeito pelos valores consagrados dos direitos humanos constituem o fundamento básico e o quadro de referência da União e da integração europeia.
A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade da pessoa humana, no Estado de direito, no respeito pelos direitos do Homem, na liberdade, democracia e igualdade – é a injunção, mais que o programa, do artigo 2º do TUE.
A garantia do respeito dos valores essenciais condensados no princípio do Estado de direito será, em boa parte, ou no essencial só pode ser, obra da Justiça.
A Justiça guarda a integridade dos valores fundadores e faz a passagem da proclamação para a efectividade dos princípios.
Deve dispor, para tanto, das necessárias competências no cumprimento desta missão, no alfa e ómega dos valores constitutivos do Estado de direito e do respeito da rule of law.
É sempre bom recordar que a construção europeia, em momentos determinantes para a afirmação dos grandes princípios constitutivos, foi uma obra pretoriana – no primado, na aplicabilidade directa e no efeito directo.
Estão aí acções, faces e evidências deste enfraquecimento – no campo normativo, nas formas de neo-organização ou no recuo do conteúdo e do objecto da judicial review.
No plano normativo, podemos salientar a escassez da discussão democrática dos processos de produção e formação de normas na União e a exasperação reguladora, susceptível de afectar a razão de proporcionalidade, com o consequente afastamento dos cidadãos.
Nas formas de neo-organização, a multiplicação de Agências sectoriais – Administração dentro da Administração, com poderes materialmente de jurisdição, pode criar uma outra separação de poderes, com escassez de controlos democráticos e judiciais.
No espaço institucional das novas regulações o recuo do princípio do Estado de direito acontece em consequência do encurtamento dos espaços de intervenção judicial com a criação de zonas livres de juiz – ou em expressão crua, com a expulsão do juiz.
O judicial defict das novas funções reguladoras, e até normativas, das Agências neo-institucionais, com a consequente desconsideração da extensão da judicial review, introduz uma descontinuidade nos controlos que não poderá passar ao lado da intervenção jurisdicional.
A escolha dos caminhos na incertitude desta encruzilhada passa também – diria passa muito – por aqui.
É, hoje, largamente aceite que algumas das mais relevantes decisões em décadas de integração europeia foram tomadas por Supremos Tribunais e por Tribunais Constitucionais nacionais.
As instituições judiciais – os tribunais nacionais, especialmente os tribunais supremos e o TJUE – em permanente diálogo, de dupla direcção para ser verdadeiramente diálogo, vão continuar a procurar o ponto de encontro e de partilha numa posição inter pares no exercício das respectivas competências.
Os tribunais, europeu e nacionais, têm pela frente desafios que, em conjunto, vão superar.
A densificação permanente dos princípios, a ponderação e a proporção no activismo que preserve os equilíbrios, que permita a compreensão mútua e o reconhecimento através da partilha e não da hierarquia, contribuirão, certamente, para continuar a colocar a intervenção judicial no centro da integração.
O diálogo efectivo e substancial de jurisprudências, construídas no princípio da margem de apreciação, a confiança, o rigor da interpretação do acto claro, a consideração dialógica sobre a natureza puramente interna das questões, ou a prevenção da intervenção ultra vires, permitirão, com certeza, superar melhor os desafios da participação segura no processo de integração.
A cooperação efectiva dos tribunais nacionais no uso razoável e equilibrado dos limites do dever de reenvio prejudicial e a aproximação às jurisprudências e às culturas judiciais nacionais são, também, factores que fazem participar melhor nesta construção.
Mas permitam-me como juiz de um Supremo Tribunal nacional, que, pelos Tratados, está na primeira linha do sistema jurisdicional da União – o juiz nacional é o primeiro juiz do direito da União – manifestar a opinião, construída na experiência, de que a proporcionalidade entre culturas jurídicas aconselharia uma maior presença nas instâncias europeias de juízes com passado de exercício judicial consistente nos tribunais nacionais.
De novo, a integração europeia coloca os tribunais no lugar central.
O Presidente Lenaerts disse, em Janeiro, em Estrasburgo, que a grande narrativa da integração europeia coloca, hoje, no centro os actores judiciais.
O sistema europeu de protecção tem na Carta dos Direitos Fundamentais uma componente essencial da rule of law no interior da União e com a CEDH um controlo externo das obrigações impostas aos Estados por compromissos internacionais.
A interacção, nos limites do campo de aplicação da Carta, permitirá certamente, no mais simples – ou mais complexo – a protecção do núcleo dos valores fundamentais do Estado de direito.
O Tribunal de Justiça e os tribunais nacionais são os garantes do rule of law e dos direitos fundamentais no espaço – em todo o espaço da União
Os tribunais portugueses – que têm sido avançados e pioneiros na construção e na integração europeias e na aceitação aberta do princípio do reconhecimento mútuo – estão preparados para contribuir, em conjunto com as jurisdições da Europa, para a superação dos desafios deste tempo de incertezas.
Faço votos do maior êxito do Congresso.
24 de Maio de 2018
(António Henriques Gaspar)
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