1. Neste Acto que nos reúne – neste espaço provisório, que permitiu condições para realizar obras urgentes de recuperação e renovação da sua Casa de sempre – celebramos o Supremo Tribunal de Justiça, na continuidade a caminho de dois séculos, da Instituição Maior da Justiça portuguesa – 185 anos no próximo dia 15 – ou 23, se for considerada a posse do primeiro presidente e conselheiros.
A investidura como juízes do Supremo Tribunal constitui um Acto Grande na História contínua da Instituição e, estou certo, um momento ímpar e de imenso reconforto pessoal no percurso de vida de cada um, sempre dedicados, por modos diversos, à defesa dos valores da Justiça.
Permitam-me, neste dia marcado nas vossas vidas, que partilhe com todos vós, Senhores Conselheiros, o meu sentimento de imenso júbilo e que vos diga que é, para mim, a maior honra institucional ter o privilégio de testemunhar o vosso juramento como juízes do Supremo Tribunal.
Felicito-vos com a maior alegria e acolho-vos calorosamente no Supremo Tribunal de Justiça.
2. O juiz desempenha uma função de garantia da legalidade e da efectividade dos direitos fundamentais.
A exclusiva sujeição à Constituição e à lei é a fonte material de legitimação democrática que constitui a dimensão substancial de democracia.
Na exigência do respeito da Constituição, da lei e dos princípios materiais, que todos têm assento constitucional no desenvolvimento do princípio democrático, está a conexão com a vontade democrática do povo e a soberania popular, expressa na fórmula constitucional que afirma que a justiça é administrada em nome do Povo.
O imperativo de motivação das decisões é um factor constitutivo da legitimidade constitucional.
No modelo de organização não hierárquico e de independência, fundado no respeito da Constituição, da lei e dos princípios, a função dos supremos tribunais, sobretudo se forem, como o nosso, um tribunal de substituição e não de cassação, constitui a garantia maior da integridade da ordem jurídica contra a multiplicação e a fragmentação das jurisprudências.
Neste modelo não hierárquico, o sentido constitucional da independência impõe-nos modos de compreensão e acção compatíveis com a certeza e a segurança jurídicas, garantes da confiança e adequados a construir a harmonia e a estabilidade necessárias nos critérios jurisprudenciais, que façam a solidez do Estado que seja efectivamente de Direito e, no fundo, de direitos.
Este equilíbrio deve ser o resultado de consistente preparação de culturas institucionais integradas e intelectualmente abertas, sem solipsismos estéreis, bem como de sistemas equilibrados de instâncias que previnam ou impeçam a dispersão injustificada de critérios jurisprudenciais.
A alteração relevante das condições sociais exige a reinterpretação da lei para além do legislador histórico, que não é mais palavra sagrada quando novas questões, novas áreas e outras circunstâncias requerem a intervenção do juiz.
Na renovação do método, outros conceitos são desenhados.
Saliento a interpretação conforme, o consenso como caminho de análise, a abertura cosmopolita pelo conhecimento informado, sem deferência nem fechamento em nacionalismo metodológico, o recurso a elementos subsidiários materiais e extra-sistemáticos, as posições da doutrina, a argumentação com fontes comparadas e sistemas normativos não legais.
E no nosso contexto de interacção, o diálogo com os tribunais europeus tem de estar presente no comprometimento sólido de argumentação e partilha em benefício da confiança e da garantia dos valores do Estado de direito na Europa.
No plano metódico fazemos a síntese de várias jurisprudências.
O pragmatismo jurisprudencial, que assume um «papel regulativo e recentrador das controvérsias jurídicas» para reduzir a complexidade.
A jurisprudência dos princípios ou principialista conjuga a aplicação de princípios sem desprezar regras jurídicas precisas, com um sistema aberto de valores e princípios – igualdade, equidade adequação, confiança, proporcionalidade, necessidade, segurança jurídica.
E na inquietude do tempo presente, a jurisprudência do contexto, com a «necessidade de compreensão das situações da vida e das experiências primárias de cada um»; mas sempre com as «cautelas impostas pela racionalidade jurídico-normativa».
Sempre com uma prevenção – que é prudência base da jurisprudência.
O «entusiasmo interpretativo» não será, propriamente, uma virtude judicial.
Entre a «prudência interpretativa» e o «activismo judicial», num debate sempre inacabado, a decisão há-de ser a síntese nas funções complementares do legislador e do juiz.
Como sublinha Michal Bobek, em Comparative Reasoning in European Supreme Courts, o modelo de decisão deve ser legal-racional, que liberte os juízes do aperto formal dos códigos, mas os sujeite aos valores e ao princípio da legalidade, da consistência e da racionalidade, e os limite pela vontade expressa do legislador ao nível dos princípios e valores expressos na lei.
Encontrar este equilíbrio é o nosso desafio nesta época que desassossega, quando nas matérias mais sensíveis, especialmente na procura de direitos em sociedades de incerteza, a jurisprudência fica, não raro, no centro do confronto entre imposições de intervenção e críticas de excesso de intervenção.
3. A construção da coerência não se coordena bem com o isolamento e o individualismo; só pode ser a favor da pluralidade do colégio de decisão.
A natureza dos supremos tribunais está na colegialidade efectiva.
A colegialidade supõe e exige a abertura ao diálogo, o trabalho em comum, a dádiva intelectual e a humildade no debate e no encontro de perspectivas.
O isolamento e a menor informação sobre o conjunto podem multiplicar jurisprudências, com dano sério na força do convencimento, na incerteza e na insegurança jurídica.
É certo que a jurisprudência não é imutável, mas a renovação da jurisprudência dos tribunais supremos deve decorrer, não de afirmação avulsa de subjectividades acidentais, mas apenas como consequência da evolução das circunstâncias, consistente e objectiva, que aconselhe outras soluções.
A estabilidade da jurisprudência constitui um dever em que ficam investidos; o Supremo Tribunal tem de ser um lugar de construção da consistência, da certeza e da segurança nas relações jurídicas.
Deve ser um guia ou farol do sentido da lei para os cidadãos.
A certeza e a segurança jurídicas são, todos sabemos, definições árduas. Podem ser entendidas como valor, princípio, ideal, direito ou necessidade.
Não são categorias unívocas, nem constantes e não são compreendidas do mesmo modo pelo juiz que faz a jurisprudência, pelo jurista para quem constitui um instrumento de trabalho, ou pelos interessados ou destinatários da decisão que sofrem ou da qual tiram proveito.
Porém, independentemente de todas estas considerações, que são talvez próprias da filosofia dos conceitos, havemos de concordar que modificar a interpretação da lei por considerações sobretudo subjectivas e afirmações pessoais, pode afectar, de modo pouco compreensível, a segurança jurídica.
A alteração dos critérios jurisprudenciais supõe a afirmação cerrada e consistente do porquê da alteração.
Em presença de uma jurisprudência bem estabelecida e coerente num tribunal supremo, o juiz tem o dever de justificar os motivos da alteração e de indicar, com a maior consistência substancial, os motivos e os fundamentos imperiosos da ruptura, que não podem ser apenas meras divergências subjectivas anteriores, que nada acrescentem à substância da argumentação já devidamente ponderada.
A cultura sedimentada da instituição deve estar acima da expressão de meras opções subjectivas.
A contemporaneidade vai exigir muito de nós, na procura constante do saber, na compreensão aberta do debate, na sagesse, na abertura intelectual à cedência para aceitar a opinião divergente e na virtude de sentir que as nossas próprias certezas podem ser muitas vezes precárias.
Pudemos sentir a experiência de uma recente condenação de Portugal pelo TEDH por violação do direito ao processo equitativo, fundada em alteração de jurisprudência do STJ num caso de decisão proferida em sentido divergente da jurisprudência consolidada – caso Santos Pardal c. Portugal, de 30 de Julho de 2015.
4. A estabilidade dos tribunais supremos é construída na sedimentação e transmissão de culturas, facilitadas pela coesão das formações de julgamento e pelo tempo de permanência dos juízes em função.
A permanência temporalmente precária ou contingente dos juízes, com alterações significativas nas composições em tempo relativamente curto, tem sempre o risco de afectar o valor da coesão e a criação de espessura nas culturas jurisprudenciais.
Nestes tempos de mudanças, condicionadas por factores de variada natureza – percursos funcionais de tempo muito longo; tipo de concursos de graduação; funções exigentíssimas e de grande desgaste pessoal – o Supremo Tribunal tem sido confrontado com alterações muito dinâmicas na composição, que têm riscos na estabilidade e na coerência das jurisprudências.
Esta circunstância vai exigir muito de todos e constitui um desafio imenso, que em outros momentos do passado foi, e vai ser agora vencido, para guardarmos a coesão na contingência que vivemos.
Basta recordar que apenas num ano – de Setembro a Setembro – tomaram posse 22 juízes conselheiros e que, no meu mandado testemunhei o juramento de 43 juízes conselheiros.
Está aqui uma imensa responsabilidade, que se cumprirá no esforço e na dádiva intelectual que faça uma integração acrescentada e comprometida e continue a grandeza histórica da instituição que servimos.
E é também a maior honra.
5. Permitam-me que aproveite esta ocasião para uma reflexão que a experiência dos anos recentes me suscita – ou impõe – relativamente ao modelo de organização e aos critérios de designação dos juízes para integrarem as secções do Supremo Tribunal.
No passado, com diferentes necessidades, tudo era mais simples – para todos.
A distribuição dos juízes pelas Secções Cível e Crime do Supremo Tribunal era feita por sorteio, a cada ano, desde a Novíssima Reforma Judiciária de 1841 até ao Estatuto Judiciário de 1944 e todos os três anos até ao Estatuto de 1962.
Hoje, os critérios são objectivos, definidos na lei de Organização.
Porém, as circunstâncias têm revelado dificuldades na gestão em virtude do crescente desfasamento entre a graduação e a experiência passada dos Juízes – numa linguagem de management, que não aprecio, a especialização – e as necessidades de composição das secções.
A resolução das dificuldades tem sido possível com a compreensão, o esforço pessoal e o espírito de serviço dos juízes que têm integrado secções cuja competência material não corresponde à experiência de largos anos de exercício.
A especialização, ou o excesso de especialização dos juízes, qual panaceia moderna e tecnocrática para resolver males que não existem e para cujos riscos tenho alertado, começa agora a ser mais sentida a nível superior, com consequências que se manifestam, em crise, no Supremo Tribunal.
Temos de enfrentar esta questão quebrando tabus – e com urgência.
Há que repensar o modelo do concurso de acesso ao Supremo Tribunal, para que possa ser adaptado aos tempos novos.
Não vejo que possa ser de outro modo: dentro das diversas classes de concorrentes, o concurso deve ser feito, apenas, para cada uma das secções por especialidade.
6. Gostaria de partilhar convosco um olhar sobre o futuro da instituição.
Tenho insistido na ideia que a ordenação das competências do STJ deve ser repensada.
Perdoem a recorrência.
Podemos verificar, com a experiência dos últimos anos, que o STJ, especialmente em matéria penal, está afastado da decisão e da orientação jurisprudencial em matérias da maior relevância, em particular nas questões de processo que envolvem direitos fundamentais, mas também na injustificada limitação, não racional, do recurso apenas em função da pena aplicada, que reduz a limites preocupantes a função orientadora da jurisprudência.
No processo civil, entre outras questões que vão ser consideradas no Grupo de Trabalho que a Senhora Ministra nomeou, assinalo a urgência em esclarecer o regime da chamada «revista excepcional», previsto em 2008 e mantido, inexplicavelmente sem correcção, em 2013, desequilibrado, com disfunções graves e omisso no essencial, fonte de dúvidas e incertezas e com dificuldades de gestão que atingem o limite do suportável.
Nas reformas da última década e meia nos tribunais supremos na Europa podemos colher informação e experiências que ajudem na reflexão e, eu próprio, já apresentei sugestões que me parecem adequadas.
7. No dia inicial de integração na galeria dos juízes do Supremo Tribunal, peço que me não levem a mal que repita a citação de um aforismo do juiz Robert Jackson da “Supreme Court” (no caso Brown v. Allen, de 9 de Fevereiro de 1953), que me acompanha desde que tive o gosto intelectual de o encontrar, sobre ser juiz num tribunal de último grau: «We are not final because we are infallible, but we are infallible only because we are final».
É com esta lição de humildade e a maior admiração pela vossa superior competência, disponibilidade, inteira dedicação e exemplar sentido de missão, que fico seguro sobre o futuro da instituição que vão servir em nome do Povo, que é a fórmula da Constituição que exprime a obrigação de consciência de cada um.
Futuro, que nas circunstâncias da vida e dos ciclos do tempo, será todo vosso.
Desejo, para todos, o maior êxito e as melhores venturas ao serviço da Justiça, dos cidadãos e de Portugal.
4 de Setembro de 2018
(António Henriques Gaspar)