Quando pensávamos que a principiologia do direito internacional vertida nos tratados e convenções era garantia suficiente da paz e do respeito pela integridade territorial dos Estados soberanos, vemo-nos confrontados, em plena Europa, com um conflito armado.
A invasão da Ucrânia pela Rússia surpreende e inquieta.
O uso da força e da violência, sem razão aparente, no século XXI, contra um povo que fazia pacificamente a sua vida, provoca revolta na população europeia e nas nações civilizadas.
Como jurista, não posso esconder o meu desapontamento pela forma grotesca, primitiva, como o Estado agressor rasgou compromissos internacionais firmados em tratados e convenções.
Enquanto cidadão de uma Europa tolerante, solidária, humanista, defensora da livre e sã convivência entre os povos, não posso calar a minha indignação, o meu firme repúdio pelo modo brutal como se instalou um cenário de devastação, fome, sofrimento e morte num Estado soberano.
Os factos tristes e trágicos dos últimos dias constituem um enorme desafio para o futuro da Europa e do mundo, que terão de rearranjar os equilíbrios necessários a uma paz duradoura.
Excelências
Minhas Senhoras e Meus Senhores
O negrume dos dias que correm afeta-nos, mas não pode paralisar-nos.
A vida das pessoas e das instituições tem de prosseguir.
Este ato solene é disso prova.
É uma das muitas luzes que se acendem diariamente por este Portugal fora, sinalizando a vitalidade e perseverança das nossas instituições, no caso presente de uma instituição centenária e de enorme prestígio no judiciário português: a Relação de Coimbra.
Liderada até hoje pelo Senhor Desembargador Luís de Azevedo Mendes, permitam-me que as primeiras palavras lhe sejam dirigidas.
Durante cinco anos, o Senhor Desembargador Luís de Azevedo Mendes exerceu a Presidência desta Relação com grande saber, competência e aprumo institucional. Com a sua acutilante inteligência imprimiu dinâmicas de modernidade e dotou a Relação de Coimbra de instrumentos facilitadores do modo como o serviço da Justiça é prestado.
O termo da Presidência liberta-o, agora, para o exercício de funções estritamente jurisdicionais. Nesse capítulo, estou certo de que continuará a marcar, com as suas decisões, a melhor jurisprudência deste Tribunal.
Senhor Desembargador Luís de Azevedo Mendes:
Faço votos de que alcance o que deseja para a sua vida profissional e pessoal.
Bem o merece!
Inicia hoje funções como novo Presidente da Relação de Coimbra o Senhor Desembargador Jorge Loureiro, eleito pelos seus Pares no passado mês de fevereiro.
Deixe-me que o felicite, Senhor Presidente, pela sua eleição e que lhe confesse a grande honra que para mim constitui conferir-lhe a posse de tão importante cargo.
Todos conhecemos a vivacidade, a grande capacidade de trabalho e a extrema competência de V.ª Ex.ª no desempenho de funções na magistratura e, também, enquanto colaborador e dinamizador da Casa do Juiz.
Fica, por isso, a certeza de que a Relação de Coimbra entregou o seu futuro em boas mãos.
Desejo-lhe, Senhor Presidente Jorge Loureiro, as maiores venturas na condução dos destinos desta Relação.
Sei, por experiência própria, que a Presidência de um Tribunal da Relação é um encargo exigente e desgastante.
A Presidência não dispõe de uma estrutura de apoio administrativo e jurídico, contrariamente ao que sucede no Supremo ou nos tribunais da Comarca.
O Presidente está praticamente sozinho e tem de desdobrar- -se em inúmeras tarefas de diferente natureza.
Aliás, nas Relações, a falta de meios humanos e de estruturas de apoio estende-se aos Senhores Desembargadores que, como é sabido e contrariamente ao que também acontece no Supremo e nos tribunais da Comarca, ainda não têm qualquer assessoria.
Mais de 20 anos depois de se ter atribuído autonomia administrativa aos tribunais superiores, encontram-se ainda por regulamentar os serviços de apoio das Relações.
Compreende-se, assim, que reine nas Relações uma espécie de síndrome do filho do meio, resultante da perceção de não lhes ser dispensada a devida atenção.
O muito que há por realizar nas Relações portuguesas contará, seguramente, com o empenhado contributo e a sageza de V.ª Ex.ª.
Senhoras e Senhores Magistrados
Ilustres Convidados
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Pouco tempo depois de ter iniciado o meu mandato como Presidente do Supremo Tribunal de Justiça tive a oportunidade de me pronunciar sobre alguns temas da Justiça.
Referi, entre outras coisas, que o nosso sistema albergava um excessivo conjunto de garantias que prejudicava a celeridade processual, designadamente nos chamados megaprocessos criminais.
Houve quem logo compreendesse as minhas palavras.
Mas também houve quem não as quisesse compreender.
Aquilo a que me referia não era, obviamente, ao excesso de garantias fundamentais. Essas estão consagradas na Constituição e estão muito bem. São, para mim, e suponho que para todos os juristas, intocáveis.
O enfoque dessa minha observação era o excesso de garantias de natureza processual, criadas pelo legislador ordinário em sucessivas camadas que enredam a tramitação e favorecem o prolongamento da vida do processo.
Infelizmente, seguindo esse caminho de pródiga concessão de garantias, o legislador veio acentuar e agravar a situação com a Lei 94/2021, de 21 de dezembro, que aprovou as medidas previstas na Estratégia Nacional Anticorrupção, alterando o Código Penal, o Código de Processo Penal e leis conexas.
A alteração de algumas das normas do processo penal representa mais um obstáculo à celeridade e eficácia da justiça penal.
Aludirei, brevemente, a algumas delas, começando pela do artigo 40º, que respeita ao regime de impedimentos.
Não obstante as reservas colocadas, na altura própria, pelo Conselho Superior da Magistratura, a verdade é que a redação final do artigo 40º comporta um regime de impedimentos que provocará gravíssimos constrangimentos no funcionamento dos tribunais.
O legislador, ao estender o “impedimento” a todos os atos previstos nos artigos 268.º, n.º 1, e 269.º, n.º 1, criou, sem qualquer justificação objetiva, situações sistemáticas de impedimentos que, não sendo necessárias para salvaguardar a imparcialidade do julgador, causarão entorpecimentos constantes à organização e ao funcionamento dos tribunais.
A exagerada amplitude desse regime implica, por exemplo, que o juiz que, em fase de inquérito, declare bens perdidos a favor do Estado, ou que admita a constituição como assistente, ou que autorize a efetivação de uma perícia, ou, ainda, que aplique uma medida de coação de apresentação periódica, fica de imediato impedido de intervir no julgamento. O mesmo sucede com o juiz que proceda à inquirição de uma testemunha em fase de instrução, que autorize a realização de uma busca domiciliária ou autorize uma interceção telefónica.
Excessivo, sem a menor dúvida!
Passando para outra alteração:
Com fundamento na necessidade de se repor a colegialidade existente antes da reforma de 2007, o legislador revogou o n.º 2 do artigo 419º. Mas, ao manter o n.º 1 do artigo 419º, no qual se prevê apenas a intervenção de um juiz adjunto, e sem fazer intervir um segundo adjunto, parece ter querido que o presidente da secção participe no julgamento de todos os casos.
Isto é simplesmente incompreensível, além de poder revelar- -se humanamente impraticável.
Esta alteração desvirtua o núcleo das atribuições do presidente da secção criminal e revela total desconhecimento sobre a forma como funcionam as secções criminais nos tribunais de recurso.
Veja-se outro aspeto:
A revogação do artigo 315.º, norma onde constava, por remissão para o artigo 283.º, n.º 3, al. d), o número limite de testemunhas a apresentar pelo arguido, tem como resultado que passa a não existir qualquer limite.
Não é difícil prever o que aí vem!
Por fim, a consagração da possibilidade de recurso ordinário para o Supremo em todos os casos de condenação inovatória pelo Tribunal da Relação, e não apenas nos casos de reversão de absolvição em condenação em pena de prisão efetiva, permitirá recurso para o Supremo de um acórdão da Relação que condene o arguido, anteriormente absolvido, numa pena de, imagine-se, 10 dias de multa!
Outros haverá, mas os exemplos abreviadamente expostos representam sério revés no propósito de se conseguirem respostas mais rápidas e eficazes do sistema de justiça na área criminal.
Devo anotar, com surpresa, mas com todo o respeito institucional, que esta Lei da Assembleia da República foi aprovada por unanimidade.
Estamos apenas a quatro dias da entrada em vigor das referidas alterações ao Código de Processo Penal.
As repercussões negativas vão começar a sentir-se rapidamente e a censura social dos atrasos nas decisões finais vai recair – como sempre acontece – nos magistrados e nos tribunais.
O Ex-Presidente da Assembleia da República e ilustre jurista Doutor António de Almeida Santos, que também apontava como um dos males da Justiça o excesso garantístico, dizia, no seu esclarecido juízo: “é profundamente injusto que a opinião pública apresente aos magistrados a fatura da morosidade da justiça”.
Apesar de ainda não terem entrado em vigor as alterações contidas na Lei 94/2021, é, portanto, urgentíssimo repensá- -las.
Se nada se fizer, no imediato, o preço da fatura será muito elevado e, embora esta seja apresentada ao habitual ‘devedor’, quem a terá de pagar serão os cidadãos e a sociedade.
Excelências
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Não quero que esta incursão menos positiva sobre o processo legislativo afete a alegria deste importante evento para a História desta instituição.
Hoje é dia de celebração na Relação de Coimbra.
Celebremos, pois!
À Relação de Coimbra e ao seu novel Presidente desejo todo o sucesso e as maiores felicidades.
Coimbra, 17 de março de 2022
Henrique Araújo, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
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