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Cerimónia de Abertura do Ano Judicial 2023

10 Jan 2023

As contingências geradas pela pandemia e pelas eleições legislativas do passado ano, fizeram com que a cerimónia de abertura do ano judicial de 2022 tivesse decorrido em Abril.

Decorridos nove meses, estamos novamente reunidos neste Salão Nobre do Supremo Tribunal de Justiça para assinalar a abertura do ano judicial de 2023, desta vez no tempo próprio, ou seja, no momento em que se inicia o correspondente ano civil.

Conforme referi na cerimónia do ano transato, esta é a oportunidade de todos os que têm responsabilidades na área da Justiça prestarem contas do que foi feito e do que falta fazer.

Reservo, porém, a parte inicial desta minha intervenção para felicitar a Senhora Doutora Fernanda de Almeida Pinheiro pela sua eleição como Bastonária da Ordem dos Advogados.

Desejo a Vossa Excelência o maior sucesso nestas novas funções, e coloco-me à disposição para toda a colaboração institucional que considere adequada no muito que há a fazer pela Justiça portuguesa.

Permita-me que, na pessoa de Vossa Excelência, cumprimente todos os advogados portugueses e felicite os membros eleitos para o Conselho Superior, Conselho Geral e Conselho Fiscal da Ordem.

Serve também esta oportunidade para saudar o Senhor Bastonário cessante, Senhor Professor Doutor Luís Menezes Leitão, e agradecer-lhe o relacionamento cordial que mantivemos durante o período em que os nossos mandatos coincidiram.

Senhor Presidente da República
Excelências

Na discussão sobre o estado da Justiça há duas posições praticamente antagónicas.

Há quem considere, por convicção ou por conveniente pragmatismo, que está quase tudo bem e que bastariam algumas intervenções pontuais para o sistema judicial funcionar melhor.

E há quem defenda, como eu, que é necessária uma reforma de fundo, com implicações ao nível da própria alteração do modelo de organização judiciária desenhado no texto constitucional.

Pelos sinais que chegam, não creio que este último entendimento possa fazer caminho nos próximos tempos.

Foi recentemente iniciado o processo que conduzirá à oitava revisão da Constituição.

Consultadas as propostas de revisão constitucional das várias forças políticas com assento parlamentar, estou convicto de que nada de estrutural mudará no que respeita à organização dos tribunais.

Ora, a Justiça é, antes de tudo, uma questão política.

Uma questão política da máxima importância.

Incompreensivelmente, o debate político sobre a Justiça saiu de cena há vários anos.

É verdade que nos tempos que correm a economia condiciona, subjuga ou até anula todas as outras áreas da política.

Mas também não deixa de ser verdade que temas políticos de segunda linha se sobrepõem a uma agenda para a Justiça, relegando esta para um plano bem secundário.

No passado dia 22 de dezembro, por ocasião da receção aos representantes da Justiça para apresentação de cumprimentos de Boas Festas, no Palácio de Belém, Vossa Excelência, Senhor Presidente da República, frisando a importância da Justiça num Estado democrático, referiu o seguinte:

Não podemos, por causa das crises que temos atravessado, esquecer a Justiça.
Não há economia que se afirme, sem Justiça.
Não há respeito da Justiça social, sem Justiça.
Não há presença da educação e da cultura, sem Justiça.
Não há participação cívica efetiva, sem Justiça.

Senhor Presidente da República:
Se me permite, ousaria acrescentar à reflexão de Vossa Excelência, o seguinte:
Não há segurança sem Justiça.
Não há ordem nem paz social sem Justiça.
Não há liberdade sem Justiça
Não há democracia sem Justiça.

Afastada a possibilidade de, num horizonte próximo, vermos alterado o modelo de organização dos tribunais, há que avançar para medidas que melhorem o sistema judicial e o tornem mais eficiente e eficaz.

Menciono quatro campos onde essa intervenção se impõe:
– reforço da independência do poder judicial;
– investimento nos recursos humanos e materiais;
– alterações ao nível da legislação processual; e
– criação de condições para maior transparência e escrutínio da atividade dos tribunais.

A existência de tribunais independentes é uma garantia para a proteção dos direitos fundamentais e das liberdades cívicas.

Aos tribunais está cometida a tríplice tarefa de tutelar os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.

Para assegurar o cumprimento desta complexa tarefa é indispensável que o poder judicial esteja a salvo da interferência dos outros poderes.

A independência do poder judicial não é, em si mesma, um fim, mas apenas um meio para garantir o Estado de direito democrático.

No conjunto dos sistemas judiciais da União Europeia, os tribunais portugueses apresentam um apreciável nível de independência, mas ainda existem algumas fragilidades.

Uma delas tem a ver com a carência de estruturas de apoio aos Presidentes das Relações e aos serviços desses Tribunais, que aguardam, há mais de 20 anos, pela concretização da autonomia administrativa e financeira atribuída pelo DL 177/2000, de 9 de agosto.

O diploma que iria adaptar os serviços de apoio desses tribunais superiores ao regime de autonomia consagrado naquele decreto-lei, nunca viu a luz do dia, não obstante ter ficado consignado que seria publicado em 120 dias.

Um outro aspeto importante a aperfeiçoar tem a ver com o sistema de financiamento dos tribunais, designadamente com o processo de atribuição das dotações orçamentais, cujos montantes se têm revelado sistematicamente inferiores às necessidades, acabando por condicionar a atividade judiciária.

Reclama igualmente urgente resolução o problema da detenção e domínio da plataforma digital de gestão e tramitação eletrónica dos processos.

Essa plataforma continua a ser detida pelo Ministério da Justiça, situação que conflitua, flagrantemente, com o princípio da separação de poderes, devendo o seu domínio passar para as mãos do Conselho Superior da Magistratura.

 

Excelências:

Anos sucessivos de inação, gestão curta e desinvestimento fizeram avolumar os problemas nos tribunais judiciais.

O esforço e dedicação dos magistrados e funcionários judiciais continuam a tornar possível a realização da Justiça, mas há tribunais em situação de iminente rutura em termos de recursos humanos.

O número de funcionários judiciais que o sistema atualmente comporta é extraordinariamente escasso para o volume de serviço existente, com a agravante de que a média de idades dos funcionários ultrapassa os 50 anos.

Existem também dificuldades quanto a equipamentos, sendo, por exemplo, preocupante o atraso na preparação e instalação nos tribunais de estruturas de rede de internet compatíveis com o uso massificado de transmissões eletrónicas.

Também na parte do edificado da Justiça é urgente uma intervenção.

São bastantes os tribunais que se encontram a funcionar em edifícios indignos ou em instalações provisórias, sem o mínimo de condições para quem neles trabalha.

Derivando agora para aspetos de ordem jurídica, insisto na necessidade de se alterarem as leis do processo civil e penal.

Os constantes avanços tecnológicos, a velocidade a que se processa a informação, a maior complexidade económica, social e relacional, os fenómenos da criminalidade organizada e da corrupção reclamam uma Justiça menos burocratizada e que dê respostas mais prontas.

Por isso, as leis processuais devem ser objeto de revisão, atribuindo-se mais ênfase ao princípio da oralidade em determinadas fases do processo, clarificando-se as regras de impugnação recursória da decisão sobre a matéria de facto e eliminando-se a utilização abusiva das garantias processuais que visam retardar o julgamento ou evitar o trânsito em julgado da decisão.

Este abuso pode ser eliminado com coisas bem simples, como, por exemplo, a mudança, de suspensivo para devolutivo, do efeito do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, tão comum em processo penal, e que, na sua esmagadora maioria, visa atrasar o trânsito em julgado da decisão condenatória ou levar o processo à prescrição.

Senhora Ministra:

Desde que Vossa Excelência assumiu funções como titular da pasta da Justiça, em 30 de março do ano passado, tem havido diálogo franco e constante sobre estes e muitos outros problemas que afetam a atividade dos tribunais judiciais.

No entretanto, foram resolvidas algumas questões.

Lembro, por exemplo, a importante reversão do regime de impedimentos que a Lei 94/2021 estabelecera.

Foi a intervenção rápida e eficaz de Vossa Excelência que conduziu a que a Assembleia da República procedesse, no dia 1 de agosto de 2022, à alteração do artigo 40º do CPP e de outras disposições legais claramente desajustadas, evitando- -se desse modo a instalação do caos na jurisdição criminal.

Saliento, também, o esforço desenvolvido para a recuperação de alguns espaços e a criação de outros, bem como a mais recente iniciativa de aumentar a capacidade formativa do Centro de Estudos Judiciários, medida que poderá fazer recuar, a médio prazo, a tendência de envelhecimento das magistraturas.

Sei que não é humanamente possível resolver, em prazo curto, todos os problemas que se foram acumulando, mas acredito que haverá vontade para a sua gradual resolução, em benefício de um sistema judicial que melhor sirva os cidadãos.

Excelências:

A confiança dos cidadãos na Justiça depende em grande medida dos índices de transparência e da possibilidade de escrutínio da atividade dos tribunais.

No seguimento da minha intervenção na cerimónia de abertura do ano transato, o Conselho Superior da Magistratura deliberou, por unanimidade, constituir um grupo de trabalho que estudasse e propusesse ao Plenário as alterações estatutárias tendentes a evitar a circulação de magistrados judiciais para cargos ou funções políticas de relevo, em regime de comissão de serviço.

Os trabalhos estão praticamente concluídos e a proposta de alteração do Estatuto dos Magistrados Judiciais irá ser apresentada numa das próximas reuniões do Plenário do Conselho.

Sem poder, obviamente, antecipar o que quer que seja sobre o resultado desses trabalhos, e independentemente do que vier a ser deliberado pelo Plenário do Conselho Superior da Magistratura, suponho que esta discussão será sempre um avanço na busca de maior transparência para o sistema judicial.

Igualmente importante é que se alargue o escrutínio da atividade dos tribunais.

Os tribunais superiores já publicam, em regra, todas as decisões, que são anonimizadas pelos respetivos serviços.

Contudo, isso ainda não acontece com as decisões proferidas na primeira instância, pela simples razão de que não existem meios e ferramentas que possibilitem a anonimização dessas decisões, conforme obriga o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados.

São largas centenas de decisões diárias que, naturalmente, não podem ser anonimizadas manualmente pelos funcionários dos tribunais.

Como também noticiei no ano passado, o Supremo Tribunal de Justiça tem em execução um projeto de aplicação de técnicas de inteligência artificial, denominado Projeto IRIS- Informação, Racionalização, Integração e Sumarização.

Esse projeto visa a criação de aplicações informáticas dirigidas essencialmente à anonimização e sumarização de acórdãos, bem como à produção de uma base de dados jurisprudenciais de acesso universal.

Trata-se de um projeto candidato ao Programa Operacional Competitividade e Internacionalização (COMPETE 2020), desenvolvido pela equipa do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores – Investigação e Desenvolvimento (INESC-ID).

O resultado desse projeto foi apresentado, em sessão pública no Supremo Tribunal de Justiça, no passado dia 19 de dezembro e, durante o primeiro semestre deste ano, estarão prontas a ser utilizadas as respetivas aplicações, cujos protótipos estão já em fase de experimentação.

A aplicação relacionada com a anonimização será, então, livremente disponibilizada a todos os tribunais nacionais e a todos os organismos e entidades que mostrem interesse na sua utilização.

O Conselho Superior da Magistratura, centralizando toda a informação dos tribunais da primeira instância, poderá nessa ocasião usar a referida ferramenta para divulgação de todas as decisões, cumprindo-se assim uma etapa fundamental no sentido de uma maior transparência e mais alargado escrutínio da atividade jurisdicional.

Senhor Presidente da República
Senhor Presidente da Assembleia da República
Excelências

A Justiça assume uma importância central no Estado de Direito democrático.

Por isso, voltando à minha consideração inicial, permitam-me que sublinhe a necessidade de que seja relançado o debate político sobre o futuro da nossa Justiça, sem preconceitos, corporativismos ou condicionantes político-eleitorais.

A todos desejo um Bom Ano de 2023.

LISBOA, 10 de janeiro de 2023

​Henrique Araújo, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

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