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Discurso de Homenagem a Juízes Conselheiros

11 Jul 2025

Homenagem em tempo de verão

 

Em dias escolhidos do ano de 2025, nas páginas digitais do Diário da República, foi anunciado que se encontravam desligados do serviço.

Sem qualquer cerimonial ou outro gesto de reconhecimento, um Estado e uma sociedade à deriva, entretida com a espuma dos dias, indiferente ao valor de quem presta um serviço público com esta relevância, desligou-vos de uma vida de 40 anos.

Durante estes largos anos percorremos juntos um longo caminho.

Chegámos aos tribunais, numa época de profunda mudança e fomos nós, muitas vezes sem nos apercebermos, os agentes dessa mudança.

Foi a nossa geração, com novos ideais e valores, mais aberta, mais atenta à realidade, com um forte sentimento de independência e liberdade, com uma enraizada consciência do respeito pelos direitos dos cidadãos, que viria a marcar o modo como se passou a fazer justiça em Portugal após o 25 de abril.

E durante quarenta anos fomos acompanhando as súbitas mudanças do mundo, que sucessivamente foram ocorrendo, numa velocidade em constante aceleração.

Quando começámos manuscrevíamos despachos e sentenças, bastando um pequeno lapso, por vezes no fim do verso de cada folha de papel timbrado, para ter de repetir o que se havia acabado de escrever, numa caligrafia que ainda se queria legível.

E essas folhas esparsas, autênticas peças artesanais, eram cozidas à linha, em volumes de uma só cor, que saíam de estantes cuidadosamente arrumadas na secretaria para serem colocados, amontoados em pilhas, nas nossas secretárias, aguardando, diariamente, pela nossa atenção.

Ao mesmo tempo que nos exigiam a tomada de decisões com forte impacto nas vidas das pessoas, tínhamos de copiar acusações, articulados e anteriores despachos, numa estranha função de amanuense, como qualquer zeloso escriturário de uma repartição pública.

Os despachos saneadores, com especificação e questionário, eram então a obra de arte que definia a qualidade técnica do artífice, pelo que, quando surgiu a alteração legal que permitia a elaboração desta peça por simples remissão, rejeitámos tal possibilidade, porque não íamos em facilitismos e a tradição ainda era o que mais tarde deixou de ser.

Entretanto, nos anos 90 do século passado, chegou a evolução tecnológica, que atirou para o caixote de lixo da história os velhos procedimentos.

Os computadores entraram com estrondo nos tribunais, desorganizando-nos as rotinas com um desafio para o qual, na altura, muitos de nós não estavam preparados.

Aderimos com desconfiança ao uso do sistema operativo MS-DOS, inicialmente mais lento do que a clássica caneta, porque muitas vezes nos devorava os textos que nos esquecíamos de “salvar”.

Mas não resistimos à capacidade de sedução do Windows e do Word que revolucionaram as técnicas de construção das sentenças.

Disquetes, cds, pens e clouds passaram a ser, sucessivamente, instrumentos da nossa vida diária, ficando esquecidas nas gavetas das nossas memórias as Parker e as Mont Blanc que nos haviam oferecido num qualquer aniversário ou no Natal.

Especializados em datilografia, deixámos de perder tempo com cópias, mas passámos a copiar e a colar demais, atrofiando a nossa capacidade de pensar.

Foi uma mudança que veio para ficar e cuja evolução futura atemoriza os mais lúcidos.

Depois veio a turbulência dos mercados, a implosão do sistema de crédito, a alienação do consumismo, a cobrança de milhares de pequenas dívidas por parte de empresas predadoras da justiça.

Os processos multiplicaram-se e era preciso exterminá-los para ter o tribunal em dia, sob uma pressão que nos retirava fins de semana e oferecia noites mal dormidas, nos sacrificava a relação familiar e nos alienava do mundo.

Mas a história do mundo continuou no seu vertiginoso movimento e eis que a comunicação social entrou nos tribunais, com holofotes e notícias em “horários nobres”, rasgando o manto de penumbra e do silêncio que nos protegia.

Chegou o tempo dos processos mediáticos que abrem telejornais e são manchetes da imprensa, revelando um fosso entre o tempo da justiça e o tempo da notícia, numa relação tensa que alimenta a incompreensão dos cidadãos perante a pesada solenidade dos tribunais.

Nesta súbita exposição, mantivemos a dignidade própria dos órgãos de soberania e fomos resistindo ao discurso deslegitimador que se instalou.

Incumbidos de uma missão que nos transcende, nunca abdicámos da independência que é a garantia imprescindível de um poder judicial credível e trave-mestra de um regime democrático.

Quando terminou a turbulência dos movimentos judiciais que numa sucessão de conveniência ou contragosto geográfico foram somando anos, surpresas, memórias, viagens semanais e experiências, chegámos aos Tribunais da Relação.

Aí fomos colocados a julgar e decidir através de fotografias de som e como ourives das palavras e dos conceitos.

Alargámos o território exterior da nossa influência, mas comprimimos a nossa angular, que passou a reduzir-se aos horizontes do escritório das nossas casas.

E, cumprindo o tempo em cada volta do calendário, reencontrámo-nos, neste lugar, cheio de simbolismo, em que o Tejo vê o mar e termina o seu diversificado e longo percurso.

Não é fácil despir a beca, porque se trata de um gesto que soa a partida e ninguém gosta de despedidas.

Ou decidem não olhar para trás ou vão experimentar novos sentimentos como resultado de terem alcançado um novo miradouro nas vossas vidas.

Não vos falo do que não sei.

Lembro-vos só que Fernando Pessoa, no seu Aniversário, contou a raiva que sentia por não ter guardado o passado roubado na algibeira.

Nuno Ataíde, Rui Gonçalves, Albertina Pereira, João Rato, Agostinho Torres, Jorge Arcanjo, Luís Teixeira, Lopes da Mota, Aguiar Pereira, Horácio Correia Pinto, António Latas, Teresa Albuquerque, Mário Serrano, António Magalhães.

São todos esses quarenta anos das vossas vidas, dedicados às vidas dos outros, que aqui homenageamos e que queremos que saibam que não serão esquecidos por quem aqui vai continuando.

É esse o significado do peso das medalhas que hoje vos foram entregues.

E não se esqueçam que o n.º 2 do artigo 64.º do nosso Estatuto diz expressamente que os magistrados jubilados continuam ligados ao tribunal de que faziam parte.

Muito obrigado, por tudo o que deram de vós.

Antes do nosso tradicional almoço de Verão e de desfrutarmos da alegria de estarmos juntos, queria acrescentar 3 post-scriptum:

Em primeiro lugar, uma palavra muito especial de elogio e agradecimento ao Lopes da Mota e ao Horácio Correia Pinto, que, juntando-se ao Luís Mendonça, ao Domingos Morais e ao Pedro Lima, mesmo após terem sido obrigados a jubilar-se, numa demonstração da juventude do seu espírito, manifestaram a vontade de continuar a trabalhar connosco.

São uma importante ajuda nestes tempos de aflição que o S.T.J. atravessa, por uma falta de previsão e surdez dos nossos governantes.

Note-se que no curto espaço de um semestre jubilou-se 1/4 dos juízes que compõem o S.T.J., numa repetição do quem acontecendo há muitos semestres.

Uma segunda palavra especial de reconhecimento é dirigida ao Senhor Vice-Almirante Silvestre Correia pela forma exemplar e dedicada como desempenhou as suas funções neste Tribunal, onde se distinguiu pelo saber e sensatez das suas opiniões e pelo fácil e simpático relacionamento que manteve com os juízes deste Tribunal.

Não nos tendo acompanhado no percurso de vida que hoje foi aqui recordado, veio juntar-se a nós nesta etapa final, combinando saberes e experiências, pelo que a sua passagem fica também guardada na memória deste Tribunal.

Uma terceira palavra que, sendo a última, não significa uma menor importância.

Neste verão, também regressam à vida exigente dos tribunais da 1.ª instância, a Georgina Camacho, o Rui Machado, a Ana Luísa e a Marta Rei Fernandes.

Foram colaboradores silenciosos, mas preciosos, no exercício das funções deste Tribunal.

Realizaram muitas das tarefas jurídicas que suportam a vida diária do Supremo Tribunal de Justiça com lealdade, dedicação e competência.

A excelência do vosso trabalho nos bastidores das nossas decisões, foram um importante contributo para a sua qualidade.

Por isso, levam convosco não só a riqueza da experiência que vos proporcionou a passagem por este Tribunal, mas também o respeito, a admiração e a gratidão de todos os juízes que beneficiaram do vosso saber e dedicação.

Desejo-vos os maiores sucessos e felicidade neste regresso aos tribunais da 1.ª instância.

Lisboa, 09 de julho de 2025

João Cura Mariano, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

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