Partindo da afirmação inquestionável de que cada sociedade produz o seu tipo de magistrados, referiu o Conselheiro Cunha Rodrigues, no seu Recado a Penélope, que o juiz da Antiguidade era oráculo do indizível, envolvido na transcendência das religiões e dos mitos; o juiz da Idade Média era a longa mão dos senhores feudais; o da Modernidade, um elemento da “engrenagem social”; e o da pós-modernidade busca o seu lugar, assumindo uma função social sem precedente na história, traduzida numa atividade eminentemente pedagógica e, como tal, de intervenção.
Ao juiz que emerge das sociedades atuais incumbirá, pois, um papel que transcende o de mero exegeta e glosador, o de simples aplicador da lei, devendo intervir com a influência e o prestígio que a função lhe confere, como arquiteto social, abandonando o individualismo e o isolacionismo que a tradição lhe exige, antes optando por uma via mais dirigida à pedagogia do direito do que à sua aplicação fria e abstrata.
O juiz atual não tem de se exilar para defender a sua imparcialidade, não tem de se fechar na penumbra e no recato do silêncio para cumprir a sua função.
Deve manter uma janela aberta para o Mundo, uma porta aberta para os outros e com eles dialogar, na procura de soluções justas e pacificadoras das tensões sociais.
Desde há algum tempo que no Gabinete da Presidência do Supremo Tribunal de Justiça surgiu a ideia de, através da homenagem a um juiz, esboçar-se em traços leves, mas simbólicos, um exemplo para a magistratura nos tempos incertos que nos foram dados viver.
A credibilidade, a eficácia e a compreensão das decisões dos Tribunais cada vez se assumem como o último pilar que sustenta um Estado de direito democrático seriamente ameaçado por uma sociedade tecnologicamente fria e exposta à atração de soluções populistas que inevitavelmente degeneram em sistemas opressivos e autoritários.
E na concretização dessa ideia o nome do Conselheiro Armando Leandro foi unânime.
Daí que, com naturalidade, aproveitando a realização do segundo Colóquio do Supremo Tribunal de Justiça dedicado ao Direito da Família, que tem por tema a Convenção sobre os Direitos da Criança, decidiu-se, intercalar uma cerimónia simples, que sabemos ser ao gosto do homenageado, evidenciando a escolha do exemplo que entendemos ser inspirador para todos aqueles que pretendem que a justiça se realize com ética, dedicação, humanidade e, ousamos mesmo dizer, com bondade.
É certo que o Senhor Conselheiro Armando Leandro já foi distinguido com as mais diversas homenagens, designadamente pelo Senhor Presidente da República, pelo Ministério da Justiça e pelo Município onde nasceu.
Mas hoje é o momento de ver reconhecido pelos seus pares um sentimento que é comum a muitas gerações de magistrados que tiveram o privilégio de o conhecer e consigo aprender, trabalhar e partilhar ideias e projetos.
Se o realce da sua atividade profissional recai habitualmente sobre a sua preocupação com o crescimento saudável das crianças e o papel que os tribunais podem desempenhar na sua proteção, área a que, efetivamente, dedicou grande parte das suas inesgotáveis energias, o nosso propósito foi o de utilizar uma lente grande angular para lhe captar uma fotografia inteira.
O momento e o ambiente em que o fazemos já é suficiente para que a sua ligação aos direitos das crianças não deixe de ser devidamente assinalado.
Hoje, interessa-nos mais o seu modo de ser e de estar como juiz e a sua longa passagem pela formação de magistrados a quem serviu de exemplo
É certo que não vimos o jovem sub-delegado e delegado do Procurador da República, saído da Faculdade de Direito de Coimbra, iniciar e percorrer os anos 60 do século XX nos recônditos tribunais de Tabuaço, Moimenta da Beira, Baião, Trancoso, Chaves e Viseu, num tempo onde no nosso país era dificilmente percetível a revolução de mentalidades que agitava a Europa para além dos Pirinéus.
Também não assistimos ao recém promovido juiz atravessar uma anunciada, mas nunca concretizada Primavera em Portugal, na transição da década de 60 para os anos 70, nos tribunais de Marco de Canavezes, de Trancoso e de Fafe.
Respondendo à famosa pergunta do Jornalista Baptista Bastos era no Tribunal de Fafe que o Conselheiro Armando Leandro se encontrava no dia 25 de Abril de 1974.
Mas do que viemos mais tarde a conhecer é fácil adivinhar a sua dedicação à função nestes primeiros anos de magistrado, quer como Delegado do Procurador da República, quer como Juiz.
O modo como se envolveria na resolução dos litígios e a sua relação afável e compreensiva com todos os intervenientes processuais e com as comunidades locais, transmitindo uma imagem, simultaneamente de rigor, imparcialidade e seriedade, mas também de grande dedicação e proximidade com os problemas das pessoas, terão sem dúvida granjeado o apreço e a admiração dos profissionais dos tribunais e das gentes das comarcas por onde passou e exerceu funções.
Os relatórios das inspeções, apesar de utilizarem uma habitual adjetivação tabelar, não deixam, aliás de nos revelar o magistrado que foi o Conselheiro Armando Leandro nos tribunais de 1.ª instância.
Lê-se num desses relatórios, escolhido ao acaso:
Ativo e zeloso em elevado grau, muito sabedor, competente, metódico, assíduo e pontual. Tem espírito de iniciativa e muito bom comportamento moral e cívico. Às suas elevadas qualidades de inteligência e de espírito de sacrifício, alia um nobre carater, munido pelas melhores qualidades morais, o que tudo dele faz um magistrado exemplar.
Não sabia o inspetor que lhe dedicou estas palavras que passados 60 anos é esse o exemplo que buscamos e encontramos.
No Verão quente de 1975, o juiz Armando Leandro vem para a capital e é colocado no Tribunal Central de Menores onde viria a ganhar notoriedade pela adequação das suas caraterísticas humanas à especialidade dos casos que aí se julgavam.
E em 1980 é naturalmente escolhido para fazer parte do corpo docente do recém-criado Centro de Estudos Judiciários para a área da Família, assumindo também o cargo de Diretor de Estudos desta inovadora escola de magistrados.
O Centro de Estudos Judiciários como instituição fulcral do quadro do poder judicial veio a desempenhar uma papel fundamental na construção e solidificação de uma nova face da magistratura, própria de um país finalmente livre e democrático.
Na verdade, a formação de um juiz não se esgota na mera aprovação num concurso.
É necessário transmitir-lhe não só conhecimentos técnicos, mas sobretudo os valores da ética e da sensibilidade social.
É nessa escola que os candidatos a magistrados devem aprender sobretudo a dimensão humana da sua missão.
É nela que valores como imparcialidade, prudência, empatia e responsabilidade social devem ser cultivados, criando-se um corpo de magistrados verdadeiramente empenhados em efetuar uma permanente reconstrução do tecido social.
Há tempos, procurando rebater o slogan estereotipado de que Abril nunca chegou aos tribunais, normalmente retomado a propósito de eventos processuais mediáticos, procurei demonstrar o absurdo dessa afirmação, apelando, entre outros argumentos, ao importante papel que o Centro de Estudos Judiciários desempenhou na formação dos juízes que ingressaram na magistratura após o 25 de abril, e onde se destacou a personalidade do Conselheiro Armando Leandro.
Pedindo desculpa, não resisto a reproduzir o que então disse sobre o ambiente que rodeou o encontro da geração dos primeiros cursos do Centro de Estudos Judiciários com a sua marcante direção, de que fazia parte o Conselheiro Armando Leandro.
Foi com a entrada de novos protagonistas que ocorreu uma revolução difusa, mas profunda, do sistema judiciário.
Nos outrora sombrios tribunais, templos de uma verdade menor de culto quase iniciático, nos anos 80 do século passado, entrou uma nova geração de magistrados que triplicou o número de juízes então existentes.
Era um bando de jovens saído dos bancos das faculdades para os cadeirões dos tribunais e traziam com eles todos os ideais e os sonhos que abril tinha permitido expressar.
Tinham conhecido o ambiente opressivo de uma ditadura.
Tinham acordado a meio da noite, a suar frio, antevendo a altura em que teriam que partir para a guerra colonial ou projetando o seu exílio numa Europa livre.
Tinham escrito a giz roubado dos quadros negros do liceu, a palavra liberdade, encobertos pela neblina noturna, num qualquer muro da cidade.
Tinham saído à rua, naquele dia inicial inteiro e limpo, prontos a serem protagonistas de uma nova vida.
Tinham sido realistas e exigido o impossível.
Era uma geração fortemente politizada, ideologicamente formada nos movimentos associativos estudantis, que agora chegava a uma recém-criada escola de magistrados aberta a homens e mulheres que queriam ser juízes.
Aí conheceram professores como Laborinho Lúcio que os alertou que um juiz deve ter mais mundos para além das leis e dos tribunais; Armando Leandro que lhes deu um exemplo da afabilidade, da sensibilidade e da bondade que devem nortear o comportamento de um juiz; ou ainda Torres Paulo que lhes demonstrou que era possível recorrer aos grandes princípios normativos para descobrir soluções mais justas do que aquelas que o direito positivo aparentemente impõe.
Foi esta geração, com novos ideais e valores, mais aberta, mais atenta à realidade, com um forte sentimento de independência e liberdade, que viria a marcar o modo como se passou a fazer justiça em Portugal.
Foi essa a grande lição que gerações e gerações de juízes receberam do Senhor Conselheiro Armando Leandro, um juiz de causas da cidadania, um juiz envolvido socialmente na defesa de grupos de grande vulnerabilidade social, um juiz ativo e interventivo na construção de uma sociedade mais justa e solidária.
Dele todos recolhemos e guardámos na nossa memória um sorriso tranquilo que nunca se apaga, uma permanente e natural afabilidade, uma disponibilidade sem reservas, para todos, uma generosidade que o impele, com sacrifício pessoal, a aceitar responsabilidades e desafios em todos os projetos que beneficiam com o seu saber e a sua experiência.
O Senhor Conselheiro Armando Leandro terminou a sua notável carreira como juiz aqui, no Supremo Tribunal de Justiça, continuando sempre, mesmo após a sua jubilação e até aos dias de hoje, para nossa alegria e orgulho, a comparecer assiduamente neste tribunal, apesar das múltiplas tarefas e cargos que continuou a desempenhar em prol da proteção das crianças.
Diz-se que o que distingue as instituições das pessoas que as servem é a perenidade daquelas e a transitoriedade destas.
Mas há pessoas que pela sua elevação ética, afetiva, cultural e profissional, marcam de forma indelével as instituições que um dia serviram, deixando um rasto luminoso que não se apaga, que permanece como fator de prestígio da instituição e sobretudo de exemplo para todos os que nela desempenham funções.
É esse o caso do Senhor Conselheiro Armando Leandro a que hoje, em nome de todos os que serviram e servem o poder judicial agradecemos o ser a pessoa e o juiz que é.
É o seu exemplo que gostávamos que todas as juízas e juízes de hoje seguissem.
Lisboa, 29 de maio de 2025
João Cura Mariano, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
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