Quero começar por agradecer o convite que me foi dirigido para encerrar estas Jornadas jurídicas dedicadas à liberdade de expressão.
É pressuposto que um discurso que culmina um tempo de reflexão resuma as discussões havidas e retire conclusões do debate ocorrido, ou seja, que ofereça o sumo dos frutos que se colheram das intervenções que foram sendo feitas durante estes dois dias.
No entanto, por alterações imprevistas de agenda, apenas tive oportunidade de chegar ontem num voo noturno aos Açores, o que me impediu de escutar o que aqui foi dito e debatido.
Por isso, não só não vou cumprir o que seria a minha incumbência, como me vou arriscar a repetir lugares comuns e banalidades, ficando muito aquém do que merecia a qualidade dos oradores que intervieram durante estes dois dias.
Assim, após o sincero agradecimento pelo convite, o meu pedido de desculpas antecipado pela deceção causada. Se é que havia alguma expetativa.
Não há lugar mais inspirador para discutir liberdades que estas ilhas que foram estrategicamente semeadas no meio do Atlântico Norte pelos enigmáticos acasos que foram ocorrendo na configuração do nosso planeta.
O ter nascido junto do mar agrada-me, parece-me como um augúrio de liberdade disse um dia, numa conversa de fim de tarde, Vitorino Nemésio, o qual, presumivelmente, apenas por falta de espaço tipográfico não terá figurado no cartaz deste evento ao lado de outros açorianos ilustres, artífices e defensores das palavras livres e militantes, como Natália Correia, Antero de Quental, Manuel de Arriaga e Teófilo Braga.
Na verdade, a vista aberta para a grandeza de um mar sem qualquer fim no horizonte envolvente, a não ser o avistamento de outras ilhas, transmite e entranha a ideia de uma liberdade sem limites.
Daí o motivo para que talvez os Açores ao longo da sua história tenham sido sempre um reduto e um refúgio dos ideais da liberdade.
A liberdade é um conceito que encerra uma soma de muitas liberdades que na história se foram somando como uma exigência humana.
O direito à liberdade de expressão é talvez um dos direitos mais emblemáticos dos direitos fundamentais de que gozam os cidadãos de uma democracia, sendo uma verdade axiomática dizer-se que uma sociedade que viva sintomaticamente limitada na sua liberdade de expressão, olhando-se ao espelho, nunca se conseguirá reconhecer como uma democracia.
É por meio da liberdade de expressão que o pensamento se faz voz, que a consciência se torna palavra, e que as ideias se difundem e se espalham numa demonstração da criatividade humana.
É no uso da liberdade de expressão que o indivíduo sente que participa como cidadão na construção de um modo de vida comum, fazendo ouvir sem qualquer receio a sua opinião sobre o que somos e o que devemos ser.
É através da palavra que se constrói o diálogo e é por meio do diálogo que se constrói a convivência humana.
A liberdade de expressão garante não só a divulgação das ideias laudatórias, mas também as indiferentes ou as inofensivamente discordantes, conferindo também proteção àquelas que, sendo críticas e até desrespeitosas ou mesmo ofensivas, são idóneas a provocar, chocar ou perturbar o auditório.
Contudo, como sucede muitas vezes com a liberdade de expressão, esse salvo-conduto à exteriorização do pensamento pode resultar numa afetação de outros direitos fundamentais, também eles imprescindíveis à sustentação do mesmo modelo de sociedade democrática.
Nestas situações de aparente colisão de direitos fundamentais, apesar de eles terem uma vocação de plenitude, articulam-se como peças vizinhas moldáveis, feitas de plasticina, em que o alongamento de uma delas comprime as que lhes estão próximas.
Pese embora a vasta amplitude do âmbito da tutela dos direitos em jogo, quando situações da vida real convocam a sua intervenção garantística, em simultâneo, ocorre uma delimitação recíproca da proteção efetiva por eles assegurada.
Essa delimitação não resulta de uma qualquer avaliação abstrata e apriorística, só podendo ser feita, tendo presente e ponderando todas as circunstâncias que caraterizam e rodeiam a situação concreto.
É o encaixe necessário dessas peças moldáveis que suscita algumas controvérsias e que as modelações sociais que vão ocorrendo provocam alterações no modo como elas reciprocamente se estendem e se comprimem.
Estando certo que nestes dois dias já muito terá sido dito quanto aos critérios e métodos que devem nortear o legislador ordinário e o julgador nesta sensível tarefa de harmonização de direitos fundamentais integrantes do quadro normativo de um Estado de Direito democrático, aproveito esta oportunidade para partilhar duas preocupações que me tem vindo a assaltar o espírito nestes tempos de avanços tecnológicos que se sucedem e evoluem a um ritmo estonteante.
Direi, pois, algumas palavras soltas, descomprometidas e ainda sem o grau de reflexão suficiente para se encontrarem minimamente consolidadas no meu pensamento, sobre a liberdade de expressão e as redes sociais e a inteligência artificial, privilegiando a espontaneidade do meu discurso em detrimento de algum rigor.
Antes, advirto os que me ouvem que não tenho conseguido fugir ao pensamento negativo que somos passageiros de um automóvel pilotado por um condutor que não consigo identificar que, em continuo aumento da velocidade, percorre uma estrada sinuosa, provocando-me a sensação angustiante que nos vamos espatifar na próxima curva.
Vivemos numa era em que as palavras ganharam novas asas.
Elas viajam por redes digitais, atravessam fronteiras invisíveis e materializam-se em ecrãs de todos os tamanhos.
Nunca foi tão fácil falar e escrever para outros, mas nunca foi tão difícil ser escutado ou lido com tempo e compreensão.
Nunca tantos comunicaram livremente com tantos, potencializando ao máximo a força da liberdade de expressão.
O tempo é marcado por conexões instantâneas, onde as redes sociais se tornaram praças públicas digitais.
Espaços onde ideias circulam, opiniões se encontram e vozes, antes quase inaudíveis, encontram eco, reproduzindo-se e ganhando adeptos e adversários.
Nas redes sociais, onde o alcance de uma palavra pode ser instantâneo e global, o poder da expressão de um pensamento é imenso.
Uma frase publicada em segundos se pode suscitar reflexões, também pode multiplicar adesões ou provocar ondas de repulsa.
O mesmo espaço que dá voz a uma ampla diversidade de opiniões simultaneamente tem a capacidade de amplificar o discurso nele proferido.
O poder desta nova forma de comunicação global é muito mais forte do que aquele que supomos e a nossa legitima recusa em nela participar aumenta a nossa ignorância sobre a sua real influência.
É neste novo cenário que a liberdade de expressão se revela no seu expoente máximo, sendo por isso mais desafiador do que nunca até que ponto poderemos aceitar a compressão dos outros direitos igualmente fundamentais que neste novo puzzle são suas peças vizinhas.
As redes sociais espalham-se pelas mais diversas plataformas privadas, com maior ou menor dimensão, e não param de se multiplicar.
Atualmente são elas que estabelecem as suas próprias regras de controle do conteúdo, as fiscalizam e as executam recorrendo primacialmente a sistemas de inteligência artificial.
Interrogo-me se os poderes públicos devem ficar à margem deste sistema privado de censura prévia, limitando-se a aguardar que os eventuais abusos da liberdade de expressão, em que são violados outros direitos fundamentais, sejam denunciados nas instâncias judiciais, competindo aos tribunais decidir sobre o sancionamento dessas condutas.
Como é evidente esta intervenção a posteriori e tão insignificantemente residual perante o tráfego intenso das redes sociais, não tem o mínimo de expressão, assumindo uma flagrante irrelevância na realidade.
Apenas poderá funcionar, em alguns casos emblemáticos, como alertas, de duvidosa eficácia prática, para a necessidade de um uso responsável, crítico e ético das redes sociais, num compromisso com a verdade e a convivência democrática.
A mera adoção de inofensivos códigos de conduta que vão surgindo no espaço europeu, não é mais do que uma resposta tímida, demonstrativa da incapacidade de reação a um novo fenómeno por onde navegam os populismos que ameaçam e desvirtuam as democracias.
Penso que é tempo de se equacionar uma intervenção regulamentadora dos poderes públicos, estabelecendo-se regras mínimas procedimentais que vinculem e responsabilizem os titulares das plataformas digitais, de modo a evitar desmandos e arbitrariedades privadas, civilizando estes espaços uniformemente, de modo a que não se duvide que a liberdade de expressão permanece como uma dimensão essencial da dignidade humana.
Ouso agora partilhar convosco os pensamentos sombrios que me ocorrem sobre a influência da inteligência artificial na liberdade de expressão.
Os impressionantes progressos que vão ocorrendo no domínio da inteligência artificial fazem-me crer que esse será o fenómeno revolucionário da humanidade nos tempos próximos.
Fazendo aqui um breve parenteses, quando há dias me demonstraram que o Chatgpt Plus atualmente redige a fundamentação jurídica de uma sentença de responsabilidade do empreiteiro por defeitos da obra em meia dúzia de segundos, coincidindo na solução por mim preconizada, mas com um nível de argumentação, uma redação e uma capacidade de comunicação manifestamente superiores à que que eu conseguiria ao fim de muitas horas, com a mais valia que o texto artificialmente produzido não contém qualquer gralha ou incorreção gramatical, interrogo-me sobre a minha utilidade como jurista e inevitavelmente sobre a minha dispensabilidade.
Aquela máquina é muito mais sabedora, inteligente e rápida do que eu.
Porquê voltar a perder tempo e feitio a fazer uma sentença ou até a escrever uma nova edição de um livro sobre empreitada, foi o pensamento que me ocorreu.
Regressando ao tema, ferramentas como algoritmos de recomendação, códigos, assistentes virtuais e modelos de linguagem, já não são apenas intermediários neutros.
São filtros, não só moldadores de discurso, mas também já muitas vezes geradores de conteúdo.
A Inteligência Artificial, na sua expressão mínima, tem o poder de amplificar, articular relacionar, modelar ou ocultar ideias e ao ser ela a definir a forma e o conteúdo da expressão ideias e opiniões, eventualmente dominantes, retira-nos a liberdade de refletirmos com autonomia e de expressarmos um pensamento próprio.
É certo que a Inteligência Artificial aprende com o que oferecemos.
Os nossos textos, os nossos dados, os nossos valores.
Ela reflete as complexidades e contradições da nossa sociedade.
Mas ela faz escolhas nessa sua tarefa de recolher conhecimentos, relacioná-los e transmitir opiniões, exprimindo ideias e construindo pensamentos.
Dir-se-á que a liberdade de expressão no mundo digital deve ser constantemente vigiada por uma consciência crítica, plural e ética.
Que a inteligência artificial, se bem orientada, pode ser uma aliada poderosa da liberdade de expressão.
Que pode promover inclusão, traduzir vozes antes silenciadas, combater censuras e democratizar o acesso ao conhecimento.
Que podemos usá-la não como um oráculo, mas sim como uma ferramenta para criarmos o nosso pensamento, como uma extensão da nossa capacidade de conhecimento e análise, cabendo sempre a nós a decisão e a opinião final.
Que o segredo será utilizarmos a Inteligência Artificial sem deixarmos que ela nos utilize, uma vez que, se mal usada, pode reproduzir preconceitos, consolidar bolhas ideológicas e apagar perspetivas que são vitais para uma sociedade plural e saudável.
Mas este é o discurso branqueador que o CHATGTP hoje nos vende sobre a utilização da Inteligência Artificial e que eu aqui copiei.
A verdade é capaz de ser outra e que a história que contei da sentença sobre os defeitos de uma empreitada revela.
A Inteligência Artificial poderá transformar-nos em seres preguiçosos, inúteis e dispensáveis.
Se assim for, limitar-nos-emos a recolher não só os conhecimentos transmitidos pelas máquinas, mas a assimilar os pensamentos e opiniões por elas gerados e a repeti-los como as nossas verdades.
Não só não expressaremos pensamentos nossos como perderemos a própria disponibilidade e talvez até a capacidade de os construir.
Assistiremos ao suicídio da liberdade de expressão humana, num mundo tecnologicamente autocontrolado.
Não vislumbro soluções que evitem ou minorem esta aparente inevitabilidade histórica, mas não queria terminar estas Jornadas com uma antevisão tão pessimista.
A minha perspetiva é muito limitada e desde a minha juventude que abandonei os raciocínios deterministas do materialismo histórico.
A humanidade sempre se foi adaptando e encontrando os caminhos para a sua evolução como espécie, na busca incessante de uma vida digna, pelo que também os desafios que agora se colocam e que nos assustam não deixarão se ser superados.
Neste imprevisível novo mundo que se aproxima a liberdade de expressão não deixará, pois, de ser um valor que define a condição humana.
Termino esta minha participação protocolar louvando a excelente organização destas Jornadas:
– pela oportunidade da escolha temática;
– pela qualidade dos oradores que aqui trouxeram;
– e pelo modo como a todos nos receberam e acolheram.
Muito particularmente deixo aqui um agradecimento muito especial ao Dr. Pedro Albergaria, ao Dr. Francisco de Siqueira, ao Dr. José de Freitas, à. Dr. Madela Aguilar, à Dr. Sónia Braga e à Dr.ª Vanessa Silva, pelo vosso valioso contributo em prol da credibilidade de uma justiça atenta à realidade.
Muito obrigado.
Ponta Delgada, 6 de junho de 2025
João Cura Mariano, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
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