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Discurso do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Conselheiro Henrique Araújo, no Congresso “Liberdade, Meio Ambiente e Justiça”

19 Set 2023

Saúdo todos os presentes e, muito em particular, o Senhor Doutor Nelson Faria de Oliveira, Secretário-Geral da Comunidade de Juristas de Língua Portuguesa, a quem quero agradecer todo o entusiasmo e empenho dedicados à realização deste Congresso, no âmbito das comemorações dos 190 anos do Supremo Tribunal de Justiça.

Nesta feliz oportunidade de reencontro lusófono, juntamos juristas de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné, Macau, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste para refletirmos e dialogarmos sobre três temas de suprema importância para o futuro das nossas Nações: Liberdade, Meio Ambiente e Justiça.

Aos distintos oradores deixo aqui uma palavra de imensa gratidão.

Excelências:

Falamos uma língua comum.

Uma língua que se recria e reinventa todos os dias nos vários espaços nacionais que dela se servem e que através dela moldam as suas culturas e modo de viver.

Como dizia Eduardo Lourenço, uma língua não é de ninguém, mas nós não somos ninguém sem uma língua que fazemos nossa.

Ao fazermos nosso, de cada país, o mesmo código linguístico, beneficiamos da inquestionável vantagem de fazermos fluir as ideias e as mensagens em toda a galáxia lusófona.

Liberdade, Meio Ambiente e Justiça.

Cada um destes tópicos daria para considerações que não cabem num dia.

Teremos oportunidade de ouvir várias perspetivas sobre a tríplice temática e as principais preocupações e desafios que se colocam.

Permitam-me brevíssimas considerações.

Não há Liberdade sem Justiça, porque só esta garante aquela.
Mas a Liberdade e a Justiça efetiva apenas são possíveis num único sistema de organização política, a Democracia.

Só faz sentido falar de Liberdade e Justiça em democracia. A Liberdade e a Justiça não têm espaço, não respiram, em arremedos de Democracia, fundados em modelos meramente formais que escondem práticas autocráticas e usam sistemas de Justiça contaminados por outros poderes, designadamente pelo poder político.

Talvez haja uma palavra de aplicação transversal aos três tópicos de debate que represente o que é necessário para proteger e consolidar a Liberdade, o Meio Ambiente e a Justiça: RESPEITO.

Respeito pelos direitos fundamentais e pela dignidade da pessoa humana; respeito pelo princípio da separação de poderes e pelo Estado de Direito; respeito pela participação dos cidadãos na vida da sociedade e nas suas formas de regulação; respeito pela Natureza, pelo próximo, pelos mais vulneráveis.

Mas como se poderá garantir o RESPEITO pela Liberdade, pelo Meio Ambiente e pela Justiça quando a vida das nações é totalmente dominada pela Economia?

A experiência dos últimos anos tem comprovado que a ditadura da economia fragiliza os alicerces da civilização, degrada o meio ambiente e fomenta o individualismo, favorecendo a máxima ‘cada um por si’ e atirando os princípios e os valores para o horizonte do dispensável.

 

E como se poderá garantir o RESPEITO pela Liberdade, pelo Meio Ambiente e pela Justiça quando o estado deplorável em que o mundo se encontra é superado pelo estado ainda mais deplorável em que se encontram as virtudes do ser humano, como a ética, a moral, a honestidade, a integridade e a solidariedade?

Na luta individual e supercompetitiva, os mais fortes, ou seja, aqueles que pertencem às elites da política, da finança e da sociedade, empurram os mais fracos para a vulnerabilidade e pobreza.

Não admira, por isso, que, em várias latitudes do mundo, se assista a um enorme desencanto e que as democracias comecem a desabar, dando lugar a ditaduras ou democracias de papel, em que as juras constitucionais ao Estado de Direito e aos direitos fundamentais não passam de fingidas proclamações sem adesão à vida e à realidade.

A Liberdade, a Justiça e a Democracia do século XXI vivem, de facto, momentos críticos e decisivos.

No passado dia 15, comemorou-se o Dia Internacional da Democracia.

O modo totalmente desinteressado como esse dia foi assinalado em Portugal retrata na perfeição a indiferença que se nota em relação a um assunto tão importante para a liberdade e para a vida das pessoas e instituições .

 

Não é possível defender a democracia se não houver uma efetiva participação dos cidadãos nos assuntos da comunidade e uma opinião pública informada e atenta.

O que acontece, todavia, é que a opinião pública e o espaço cívico de debate estão cada vez mais constritos.

Deixem-me pedir ajuda a Carlos Drummond de Andrade.

Num dos seus Contos Plausíveis, com o título “A Opinião em Palácio”, este célebre autor brasileiro contava:

O rei fartou-se de reinar sozinho e decidiu partilhar o poder com a Opinião Pública.
— Chamem a Opinião Pública — ordenou aos serviçais.
Eles percorreram as praças da cidade e não a encontraram. Havia muito que a Opinião Pública deixara de frequentar lugares públicos. Recolhera-se ao Beco sem Saída, onde, furtivamente, abria só um olho, isso mesmo lá de vez em quando.
Descoberta, afinal, depois de muitas buscas, ela consentiu em comparecer ao palácio real, onde sua majestade, acariciando-lhe docemente o queixo, lhe disse:
— Preciso de ti.
A Opinião, muda como entrara, muda se conservou. Perdera o uso da palavra ou preferia não exercitá-lo. O rei insistia, oferecendo-lhe sequilhos e perguntando o que ela pensava disso e daquilo, se acreditava em discos voadores, horóscopos, correção monetária, essas coisas. E outras. A Opinião Pública abanava a cabeça: não tinha opinião.
— Vou te obrigar a ter opinião — disse o rei, zangado.
— Meus especialistas te dirão o que deves pensar e manifestar. Não posso mais reinar sem o teu concurso. Instruída devidamente sobre todas as matérias, e tendo assimilado o que é preciso achar sobre cada uma em particular e sobre a problemática geral, tu me serás indispensável.
E virando-se para os serviçais:
— Levem esta senhora para o Curso Intensivo de Conceitos Oficiais. E que ela só volte aqui depois de decorar bem as apostilas.

Pois bem.
A sensação que tenho – certamente por vós partilhada – é a de que a opinião pública, ou continua a frequentar, sem aproveitamento, o tal curso intensivo, ou então – e esta é a hipótese mais provável – já dele desistiu e optou por se deliciar com as futilidades e pequenos prazeres tecnológicos da vida contemporânea.

Temos, portanto, que dar razão a Hubertus Buchstein quando afirma que o grande problema é que a democracia necessita de atores que ela própria é incapaz de produzir.

É este o ponto em que, infelizmente, nos encontramos: total indiferença da sociedade civil em relação aos temas fundamentais para o bem-estar futuro das populações.

Sem opinião pública que o ajude a bem governar, poderia o ‘rei’, ainda assim, governar bem, usando bom senso, sentido prático e visão estratégica.

Mas a verdade é que o próprio ‘rei’ também vive e pensa em função do curto prazo, dos ciclos eleitorais e económicos, sem capacidade estratégica para combater as crises relacionadas com as alterações climáticas, as fontes de energia, o capitalismo financeiro, as migrações, o envelhecimento das populações, a sustentabilidade das pensões, as guerras e conflitos.

Estão, assim, criadas as condições para o surgimento de comportamentos políticos regressivos, como o populismo, o autoritarismo ou o consumo passivo de políticas habilmente mediatizadas à custa da massificação da ignorância.

A luta pela democracia, e, logo assim, pela Liberdade e Justiça, é obrigação de todos nós, com coragem e renúncia ao comodismo e ao politicamente correto, fazendo de cada dia uma etapa contra a discriminação, a intolerância, a violência, a desigualdade e as tendências tirânicas de algumas modas.

No leste da Europa, e em muitas outras partes do planeta, assiste-se a fenómenos de deterioração da Democracia com impacto muito negativo nas instituições da Justiça, nomeadamente através de medidas que afetam gravemente a independência dos tribunais e dos juízes.

São conhecidos os sinais de alerta emitidos por vários organismos de topo da União Europeia, perante aquilo que se apresenta como ataques ao Estado de Direito em alguns países da União.

Num outro ângulo de análise:
Se as condições de organização política e social são indispensáveis à dignidade da pessoa humana e à proteção dos direitos fundamentais, ter-se-á também de reconhecer que só um meio ambiente ecologicamente equilibrado permitirá o gozo desses direitos, designadamente o direito à vida, à saúde física e mental e, duma forma geral, ao bem-estar dos cidadãos.

Ora, os comportamentos humanos que provocam o desequilíbrio ecológico, geram, como sabemos, inúmeras situações que configuram negação da dignidade das pessoas e dos grupos sociais, em especial dos que se encontram em situação de pobreza ou maior risco social.

Daí a importância de relacionar a Justiça com o Meio Ambiente e de dotar os ordenamentos jurídicos de instrumentos que o protejam eficazmente e sancionem, com efeito dissuasor, os agentes prevaricadores.

Há muito trabalho pela frente: na proteção das florestas, na preservação dos rios e oceanos, no incremento de energias não poluentes, nas técnicas de reciclagem e tratamento de resíduos, na redução e combate ao ruído, enfim, em tudo o que seja essencial para proteger a Natureza e o Meio Ambiente.

 

Excelências:
Minhas Senhoras e Meus Senhores:

Já vai longa esta intervenção introdutória do Congresso.

Por isso, termino, fazendo votos de que este encontro seja produtivo e repetindo uma sincera palavra de gratidão a todos os que, generosamente, se associaram ao Supremo Tribunal de Justiça neste momento tão importante da sua história.

 

 

Lisboa, 19 de setembro de 2023

 

Henrique Araújo, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

 

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