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Intervenção na Conferência “A Justiça antes e depois do 25 de Abril”

21 Mar 2024

É a primeira vez que os quatro tribunais que ocupam o topo do nosso ordenamento judiciário se reúnem, numa clara demonstração de união e de convergência quanto à necessidade de reafirmar o papel da instituição Justiça na realização do Estado de Direito Democrático, precisamente nas vésperas da comemoração dos 50 anos da Revolução que devolveu aos portugueses a liberdade e a esperança num futuro melhor.

Nesta conferência, integrada no programa das Comemorações dos 50 anos do 25 de abril, falar-se-á da Justiça antes e depois da Revolução dos Cravos.

Para cumprir o tempo concedido para esta intervenção introdutória, limitar-me-ei a alguns tópicos, mais dirigidos à jurisdição comum.

A Justiça, antes da Revolução de Abril de 1974 assentava num modelo autoritário, conservador e excessivamente burocrático,  reflexo do sistema político ditatorial gerado a partir da Revolução Nacional do 28 de maio de 1926.

Os tribunais especiais, designadamente os tribunais plenários integrados na orgânica comum para julgamento de crimes políticos, e um Conselho Superior Judiciário com vogais nomeados pelo Ministro da Justiça, funcionando com atribuições meramente informativas e consultivas, são os exemplos mais expressivos da secundarização do poder judicial face ao poder político.

Por outro lado, o sistema judiciário regia-se por uma legislação perfeitamente anacrónica em relação aos padrões já vigentes noutros países do continente europeu.

Com o 25 de Abril iniciou-se todo um processo de alteração das estruturas económicas, sociais e políticas do Estado Novo, abrindo caminho à formação de uma nova ordem constitucional.

Passados apenas cerca de 50 dias da Revolução de Abril, o 1º Governo Provisório, liderado pelo primeiro-ministro Adelino da Palma Carlos, do qual fazia parte, como ministro da Justiça, Francisco Salgado Zenha, editou o Decreto 251/74, que, em poucas linhas, facultou o acesso das mulheres à magistratura, dando origem a uma das principais transformações estruturais na área da Justiça.

Foi, porém, a partir da Constituição de 1976 que se produziram as maiores alterações.

Elegendo o princípio da igualdade como referência axiológica máxima, estabelecendo um sólido regime dos direitos fundamentais e  fazendo assentar a organização do Estado em princípios democráticos, a Constituição de 1976 criou o ambiente necessário para o legislador ordinário definir uma nova organização judiciária e adequar o direito substantivo e processual aos princípios normativos nela consagrados.

 

Desenharam-se novos paradigmas no Direito da Família e no Direito Penal, áreas que se ressentiam mais fortemente do pendor autoritário, conservador e desigualitário da legislação do Estado Novo.

Seria difícil, nesta circunstância, elencar todas as alterações e inovações legislativas.

Deixo exemplos das mais importantes:

Na ampla reforma do Código Civil, feita em 1977, foi adotado, na parte do Direito da Família, um modelo relacional assente no critério de igualdade dos cônjuges.

Finalmente, a democratização da família!

No primeiro dia de Janeiro de 1983, entrou em vigor um novo Código Penal, portador de uma visão humanista e conferindo à vítima a dignidade que o anterior sistema menosprezava.

No direito processual, merece especial referência o DL 39/95, de 15 de fevereiro, que consagrou a garantia do efetivo duplo grau de jurisdição em matéria de facto, rompendo com a excessiva predominância do princípio da oralidade e a fraca possibilidade de escrutinar, por via de recurso, a decisão da matéria de facto baseada em prova testemunhal.

Esta inovação acabaria por ser replicada no processo penal através da Lei 59/98, de 25 de agosto.

Ainda em matéria adjetiva, uma referência ao Código de Processo Penal de 1987, no qual se consagrou um sistema completamente novo, próprio de um Estado de Direito Democrático, pondo fim à vigência do vetusto CPP de 1929.

 

Há mais dois marcos legislativos que gostaria de enunciar, devido à enorme importância que tiveram no aprimoramento e modernização do sistema:

– A reforma da ação executiva, operada pelo DL 38/2003, de 8 de março;

– E a Lei de Organização do Sistema Judiciário, de 26 de agosto de 2013.

 

Excelências:

Já passaram 50 anos!

O passado está lá.

Com conquistas e avanços importantes na área da Justiça, mas também com períodos de absoluto alheamento ou de mera atividade de gestão corrente, sem qualquer ação prospetiva.

As intermitências da atuação política num domínio tão fundamental para a vida dos cidadãos e para a democracia, conduziram-nos a um presente em que já não é possível disfarçar as vulnerabilidades do sistema.

Tenho-o dito muitas vezes, mas as minhas palavras têm esbarrado na espessa camada da indiferença. Por isso, repito: É urgente colocar a Justiça como prioridade da atuação política!

É preciso agir:  no fortalecimento da independência do poder judicial e nos níveis de transparência da sua atuação; no modelo de financiamento do sistema de justiça; na concretização da autonomia administrativa dos Tribunais da Relação; na eficácia e celeridade processuais; na formação de magistrados; nas assessorias; no acesso à justiça; na monitorização do impacto da produção legislativa; na dignificação e valorização das carreiras dos oficiais de justiça e funcionários.

É deste futuro que temos de cuidar.

Com diálogo e abertura; com empenho e espírito de compromisso; com rigor e competência.

Por uma nova Primavera na Justiça!

Por uma Justiça que honre Abril!

 

Lisboa, 21 de março de 2024

Henrique Araújo, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

 

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