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Comemoração dos 190 anos do Supremo Tribunal de Justiça

23 Set 2023

É vã a tentativa de encontrar palavras para traduzir o sentimento que me vai na alma ao ver este Salão Nobre repleto de tantos Colegas e Convidados Ilustres neste momento de festa coletiva em que se celebram 190 anos da instalação do Supremo Tribunal de Justiça, instância maior do sistema judiciário português.

Quando as portas do Supremo Tribunal abriram pela primeira vez, no dia 23 de setembro de 1833, a população foi convidada a entrar para assistir à tomada de posse dos juízes conselheiros, naquilo que constituiu o primeiro ato solene aqui realizado.

Esse convite seria hoje impossível de concretizar, por razões que me parecem óbvias.

Mas o efeito simbólico de aproximar a justiça da população e de abrir o Supremo Tribunal de Justiça à cidade está plenamente alcançado com a presença do Senhor Presidente da Câmara de Lisboa, Engenheiro Carlos Moedas, lídimo representante dos lisboetas.

Senhor Presidente:
A imediata aceitação do convite que dirigi a Vossa Excelência, há um par de meses, diz muito sobre a vontade de se juntar a nós, neste momento de júbilo e celebração, e diz também muito sobre o exemplar relacionamento institucional entre o Município de Lisboa e o Supremo Tribunal de Justiça.

 

 

Por isso, à palavra de gratidão que lhe é devida por ter aceitado o convite, acrescento outra: a da grande honra que é para nós, Supremo Tribunal de Justiça, recebê-lo nesta Casa.

Excelências:
Caras e Caros Colegas

As instituições são a grande âncora da vida democrática, na medida em que garantem o funcionamento da sociedade por via da regulamentação e controlo do comportamento individual segundo padrões e regras aceites pela generalidade dos cidadãos.

 

 

Nas suas memórias, publicadas no ano passado, Jean Monnet afirmou: “Nada é possível sem os homens, nada é duradouro sem as instituições”.

As palavras do grande arquiteto da União Europeia adequam- -se perfeitamente ao momento.

Nestes quase dois séculos de existência, o Supremo Tribunal de Justiça tem-se constituído como uma referência no sistema judicial português, correspondendo à responsabilidade que deriva do facto de ocupar o lugar mais alto na hierarquia dos tribunais e de, como tal, decidir em última instância.

A qualidade e autoridade da sua jurisprudência granjeiam-lhe o prestígio indispensável à confiança dos cidadãos na tutela efetiva dos seus direitos, liberdades e garantias.

A celebração dos 190 anos só é, porém, possível devido aos fundadores desta instituição e a todos os que nos antecederam.

São eles os verdadeiros tributários desta celebração.

Senhor Presidente da Câmara
Caras e Caros Colegas
Distintos Convidados

O Supremo Tribunal de Justiça foi criado pela Constituição de 1822, na qual se determinava que esta nova instância seria composta por juízes letrados, nomeados pelo Rei, mediante proposta do Conselho de Estado.

Num interessantíssimo artigo do Senhor Professor José Subtil, com o título “Dos Tribunais Superiores da Corte ao Supremo Tribunal de Justiça”, publicado no Livro “190 anos do Supremo Tribunal de Justiça – Arte e Património”, defende-se, com convincente fundamentação, que não existe uma relação histórica do Supremo Tribunal de Justiça com os Tribunais da Coroa do Antigo Regime dos séculos XVI a XVIII.

Segundo o autor, o Supremo Tribunal de Justiça não teve raízes na monarquia tradicional, antes emergindo, com singularidade própria, do regime constitucional saído da revolução liberal de 1820.

As conhecidas convulsões políticas subsequentes à outorga da Constituição de 1822 não permitiram desenvolvimentos imediatos quanto à organização e entrada em funcionamento do Supremo Tribunal de Justiça.

Só em 1832 é que Mouzinho da Silveira, através dos decretos de 16 e 19 de maio, desenhou os modelos de organização e funcionamento do Supremo Tribunal de Justiça e definiu a sua competência.

Dividido em duas secções, uma cível e outra criminal, e composto por um presidente, oito conselheiros, e um procurador-geral da Coroa, a competência do Supremo Tribunal de Justiça, nas revistas, limitava-se ao conhecimento de nulidades por contravenção às leis do Reino, nulidades essas que podiam consistir na preterição de formalidades, ou na aplicação da lei em desconformidade com a sua literal disposição.

Quando a revista procedesse, os autos baixavam para julgamento a realizar por tribunais diferentes, de primeira ou segunda instância, e não se admitia nova revista sobre o mesmo caso.

Era, ao fim de contas, a consagração de um sistema puro de cassação ou anulatório, inspirado na experiência francesa.

Finalmente, em decreto de 14 de setembro de 1833, referendado por José da Silva Carvalho, então Ministro da Fazenda e Ministro Interino da Justiça – determinou-se a imediata entrada em funcionamento do Supremo Tribunal de Justiça, o que viria a ocorrer – como sabemos – em 23 de setembro de 1833.

José da Silva Carvalho, figura decisiva na revolução liberal, viria a ser nomeado pelo regente D. Pedro como 1º Presidente deste Tribunal, embora não tenha exercido de facto esse cargo.

Na verdade, a sua tomada de posse do cargo, nesse mesmo dia, foi de imediato seguida da transferência da presidência para o juiz conselheiro mais antigo, Joaquim António de Magalhães, que assumiu interinamente essa incumbência durante três anos, uma vez que José da Silva Carvalho continuava as suas funções de Ministro.

No número especial de “A REVISTA”, cujo lançamento será feito daqui a pouco, o Senhor Professor José Luís Cardoso questiona a razão pela qual D. Pedro terá optado pela escolha do ministro José da Silva Carvalho como Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, quando, por força da circunstância de ser ministro, não podia exercer a presidência do tribunal.

E conclui:
“Atendendo à forte relação de confiança que D. Pedro mantinha com aquele que era um dos suportes fundamentais na luta contra a usurpação miguelista, atendendo à necessidade de dar um sinal de inequívoca força política num momento crucial após o desembarque triunfal das forças liberais em Lisboa em 24 de julho de 1834, Silva Carvalho servia na perfeição como símbolo de credibilidade, empenho e retidão na liderança do Supremo Tribunal de Justiça. Acrescia ainda o facto de Silva Carvalho ter acumulado importante experiência na gestão política de matérias relacionadas com o sistema de justiça durante o triénio liberal vintista …” – fim de citação.

Depois de se ter voluntariamente afastado do exercício de cargos públicos, José da Silva Carvalho viria a retomar o lugar de juiz conselheiro em 2 de outubro de 1840, assumindo a presidência efetiva do Supremo Tribunal de Justiça em 7 de dezembro do mesmo ano.

A têmpera, a verticalidade e a defesa intransigente do princípio da separação de poderes estão bem presentes quando manifestou à Rainha D. Maria II o seu protesto em relação ao decreto de 1 de agosto de 1844 que dava corpo à reforma da organização da justiça promovida pelo ministro Costa Cabral.

Nesse protesto, subscrito por mais onze conselheiros e pelos desembargadores da Relação de Lisboa, Silva Carvalho faz constar:

“A execução da referida lei de 1 de agosto de 1844, além de estabelecer um precedente incompatível com a Lei Fundamental do Estado, aniquila o Poder Judicial, de maneira que os direitos dos cidadãos, perdendo o abrigo que este Poder deve prestar-lhes, ficarão fluctuando à discreção do arbítrio do Poder Executivo”.

Sem deixar de acrescentar:
“A independência do Poder Judicial não é um favor concedido à classe dos juízes, é uma garantia dada à sociedade; sem essa garantia não é possível que o Poder Judicial preencha a alta missão que a Carta lhe confere, elevando-o à cathegoria de Poder Político do Estado”.

Este veemente protesto conduziu à sua destituição como Presidente do Supremo por decisão do Ministro Costa Cabral.

A dimensão ética, a envergadura intelectual, o prestígio institucional, a coragem e a fidelidade aos valores da revolução liberal, designadamente no que respeita ao princípio da separação de poderes e defesa da independência do poder judicial, fazem de José da Silva Carvalho uma figura ímpar na história judiciária portuguesa e, em particular, do Supremo Tribunal de Justiça.

O seu inspirador exemplo indicou o rumo aos que se lhe seguiram.

Hoje, confirmamos todo esse trajeto de constância e determinação na aplicação do Direito e na administração da Justiça em nome do Povo.

Por isso, orgulhamo-nos do Passado.

Orgulho que se deve ao trabalho dos magistrados e funcionários que aqui exerceram funções nestes quase dois séculos de história.

Com prejuízo das suas vidas pessoais, arrostaram todos os sacrifícios impostos pela responsabilidade de exercerem funções no mais alto Tribunal do País.

A todos eles, o agradecimento de todos nós, que cuidamos do Presente.

Naturalmente que, ao longo de todo este tempo, muitas coisas se alteraram quanto à organização, composição, funcionamento e competência do Supremo Tribunal de Justiça.

E também se verificaram alterações significativas no que diz respeito ao próprio sistema de nomeação de juízes conselheiros, aspeto que se revelou crucial para a consolidação da independência do poder judicial.

O Supremo Tribunal de Justiça assenta, agora, numa outra realidade organizacional e numa dinâmica jurídico-processual bem diferente.

Atualmente o quadro do Supremo Tribunal de Justiça é composto por 60 juízes conselheiros, 3 juízes militares, 9 procuradores-gerais adjuntos e 54 funcionários, havendo ainda uma estrutura administrativa de Apoio ao Presidente.

Os juízes conselheiros estão distribuídos por oito secções, sendo quatro cíveis, duas criminais, uma social e uma de contencioso.

Por outro lado, há muito que o Supremo Tribunal de Justiça deixou de ter funções exclusivamente anulatórias.

Com efeito, desde 1926 que se assume, fundamentalmente, como tribunal de substituição, julgando e decidindo o caso concreto, sem necessidade de nova intervenção do tribunal recorrido.

No Presente também há, como no Passado, dificuldades várias.

Umas, respeitam à insuficiência de meios humanos, especialmente ao nível da assessoria, cujo contingente continua inalterado desde há 28 anos, e de oficiais de justiça e funcionários administrativos; outras relacionam-se com as atribuições jurisdicionais e processamento dos recursos, na medida em que o Supremo Tribunal de Justiça é chamado a decidir questões de diminuta relevância económica, social ou criminal; outras ainda dizem respeito ao espaço físico das instalações.

A forma como se trabalharem e contornarem estas dificuldades vai modelar o Futuro do Supremo Tribunal de Justiça e influenciar o seu funcionamento.

É desse Futuro que quero falar, começando por abordar duas das dificuldades assinaladas.

Tenho insistido na necessidade de se tornarem mais ágeis e claras as regras de processo civil e de processo penal.

No que concerne às primeiras, foi apresentada, em tempos, ao Parlamento, a Proposta de Lei do Governo com o n.º 92/XIV/2ª, que promovia a alteração do Código de Processo Civil, visando, como um dos objetivos, a agilização da apreciação dos recursos.

A iniciativa viria, no entanto, a caducar em 22 de março de 2022, em consequência da dissolução do Parlamento.

Daí para cá não são conhecidas novas iniciativas, continuando o arrastamento de questões referentes à admissibilidade dos recursos e à sua tramitação.
Seria muito importante reanimar essa intenção.

Também no processo penal é urgente intervir para imprimir mais celeridade aos recursos e filtrar a sua admissão para o Supremo.

Aí, ainda se torna mais visível a série de expedientes processuais usados para tentar obstaculizar a ação da Justiça, principalmente por quem tem capacidade financeira para sustentar tal litigância.

Problema que não é novo, mas que persiste, pelos vistos há demasiado tempo.

Na verdade, é curioso assinalar que já na sessão solene que celebrou o centenário da instalação deste Tribunal Supremo, o Presidente de então, juiz conselheiro Eduardo Augusto de Sousa Monteiro, se referia a esta matéria.

Nessa cerimónia, a que presidiu o Chefe do Governo António de Oliveira Salazar, em representação do Chefe de Estado General Carmona, ausente por razões de saúde, o Presidente deste tribunal citou Fernão Lopes, recorrendo a uma passagem da Crónica de D. Pedro I:

“As leis e a justiça são como a teia de aranha.
Se nela caem os mosquitos pequenos, aí ficam retidos e morrem;
Se nela caem as moscas grandes, que são mais rijas, rompem a teia e vão-se.
A lei e a justiça apenas se cumprem nos mais pobres; os outros, que têm ajuda e socorro, delas escapam”.

Na substância, este problema mantém-se, apesar de negado por quem nisso vê vantagem.

Importa, assim, rever as fases da instrução e julgamento, a recorribilidade das decisões e o próprio regime de recursos.

O segundo aspeto que queria sublinhar, quanto às dificuldades presentes, é o que diz respeito ao espaço físico deste Tribunal.

Entre novembro de 2019 e abril de 2021 foram realizadas importantes obras de conservação e reabilitação.

O resultado é um deslumbre.

Mas, apesar da inteligente e bem sucedida intervenção arquitetónica, o espaço não cresce.

O edifício continua exíguo para o exercício funcional de magistrados e funcionários. Faltam, designadamente, gabinetes para juízes conselheiros e uma sala de audiência para as secções criminais.

Estando anunciada, até 2026, a deslocação de vários ministérios governamentais para outro espaço da cidade de Lisboa, espera-se a boa vontade dos responsáveis políticos para que alguns dos espaços libertados possam ser cedidos ao Supremo Tribunal de Justiça.

Ainda falando do Futuro, mas agora quanto àquilo que depende exclusivamente de nós, Supremo Tribunal de Justiça:

Como o Futuro também passa pela reconstituição do Passado, tem de continuar o trabalho de recuperação do nosso Arquivo.

A conservação dos valiosos documentos e o tratamento histórico de todo esse acervo apresenta-se como uma tarefa gigantesca, que só pode ser coroada de êxito se for pacientemente executada e de acordo com um adequado plano científico.

Será igualmente concretizado o projeto de digitalização do Arquivo, tão necessário à preservação da memória desta instituição.

No capítulo das tecnologias, mostra-se já alcançada a finalização do projeto de anonimização de acórdãos e preparado o protocolo com o Conselho Superior da Magistratura para que esta nova ferramenta possa ser estendida a todos os tribunais.

Irá também ser concluída em breve a base de dados jurisprudenciais.

Falta ainda avançar para a criação de estruturas de rede de internet compatíveis com os equipamentos informáticos e com as plataformas digitais usadas por magistrados e funcionários.

Dada a envergadura desse encargo, é fundamental a disponibilização de verbas do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência).

O Futuro contará, também, seguramente com a realização de fóruns de reflexão e debate sobre questões da Justiça e com uma regular atividade editorial.

A este propósito, quero aqui deixar um profundo agradecimento a todos os autores que participaram no número especial de “A REVISTA” e no Livro “190 Anos do Supremo Tribunal de Justiça – Arte e Património”.

Os textos publicados são de extrema importância para o conhecimento da história do Supremo Tribunal de Justiça, abrindo espaço para mais aprofundada investigação sobre todo o património artístico e documental aqui existente.

Ao terminar, formulo dois votos:

O primeiro é o de que o Supremo Tribunal de Justiça prossiga este caminho de prestígio e de reconhecimento público, essenciais à credibilidade da Justiça e ao reforço da confiança dos cidadãos nas suas instituições.

O segundo é o de que nos encontremos todos aqui, daqui a 10 anos, por ocasião da celebração dos 200 anos da instalação do Supremo Tribunal de Justiça!

Muito obrigado!

 

Lisboa, 23 de setembro de 2023

 

Henrique Araújo, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

 

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