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Discurso proferido pelo Presidente do STJ na sessão de abertura do IX Encontro do CSM

12 Set 2014
  1. O IX Encontro Anual do CSM tem lugar num tempo de enormes desafios e num momento crucial da história da justiça em Portugal.

            Desafios, na resposta às expectativas e às exigências dos cidadãos e na reafirmação da legitimidade em defesa da cidadania; e desafios na construção e na adequação humana e material de uma organização, na intersecção entre os meios disponíveis e os recursos necessários, e no encontro de uma racionalidade que é imposta a todo o sistema público institucional.

            Na justiça, os desafios são desígnios, agregação de ideais e de capacidades para caminhar o caminho do futuro.

Os desafios têm sempre associadas imensas dificuldades.

No início da execução, estamos confrontados, como é público, com dificuldades do sistema informático de tratamento processual.

Vão ser certamente superadas no tempo possível.

Mas, apesar das dificuldades iniciais, os tribunais estão no exercício das suas competências, trabalhando e praticando todos os dias os actos processuais de acordo com os instrumentos e os meios disponíveis.

O IX Encontro Anual do CSM não vai ser condicionado por esta circunstância.

Antes, convoca-nos a uma reflexão multidimensional, e não sobre factos contextuais, na passagem do pensamento para a execução, sobre os desafios e as dificuldades na construção da nova organização do sistema de justiça – construção em acção de «fazer e medir» – como foram certamente, na história judicial e nas suas circunstâncias, os tempos de 1832/33, 1841, 1874, 1926/7 ou 1973 (para não falar da oportunidade perdida do início dos anos 90).

  1. O novo modelo de organização do sistema de justiça tem pressuposto um modo de enquadramento estrutural da administração da justiça que possa conjugar-se melhor com critérios e práticas de gestão.

A eficiência e a eficácia têm sido preocupações políticas da administração da justiça. E também nossas e dos cidadãos.

A gestão e a administração são noções complexas e pluri-significativas, implicando factores financeiros e orçamentais, considerações no plano dos recursos humanos e materiais, perspectivas específicas sobre o manejamento do processo, desde a direcção do processo ao tempo de decisão, ao comportamento dos agentes e à avaliação do grau de satisfação dos cidadãos.

Mas a questão própria das noções de administração da justiça suscita várias interrogações e dificuldades.

A vastíssima literatura dedicada ao estudo das questões da governação – a «governança» – da justiça, dá conta das diversas perspectivas e da centralidade da discussão relativamente aos modelos de organização e funcionamento dos sistemas de justiça.

Os estudos sobre a matéria, frequentes desde os anos 90 do século passado, permitem salientar que os grandes princípios e os diversos modelos enquadram os sistemas de administração da justiça, e as relações entre a justiça e a administração, em arquétipos gerais, com particularidades de um para outro sistema nacional de organização.

O debate continua aberto; a concretização dos princípios nos diversos sistemas encontra várias formas de expressão e de conteúdos, e a determinação das fronteiras entre a administração da justiça e o acto de julgamento procura as tipologias adequadas para determinar a extensão da competência administrativa e gestionária.

O conceito amplo de administração da justiça é, por isso, de geometria variável, com a plasticidade para integrar uma diversidade de modelos.

Há mesmo, por vezes, sedução por ideologias, ou talvez modas, que manifestam atracção por teorizações neo-liberais, tentando aplicar à justiça perspectivas de management próprias dos sectores privados da economia, colocando a ênfase nos resultados e não nos procedimentos.

A inadequação dos métodos gestionários do sector privado é, porém, patente, porque a justiça não fabrica produtos para satisfação dos consumidores, nem tem como missão produzir a baixo custo para ter mercado e lucro; a justiça não pode actuar segundo critérios próprios do regime de mercado.

  1. Esta afirmação é axiomática.

Mas, dito isto, o desafio que todos iremos enfrentar, e que temos confiança em ultrapassar, passa pela leitura objectiva do modelo da lei de organização do sistema judiciário e pela interpretação do desenho que estabelece para a administração e gestão da justiça.

Há, na lei, uma dimensão orgânica diferente, e em muitos aspectos radicalmente nova na aparência, na definição do conjunto de instituições e órgãos com competência para dizer a justiça e na gestão da justiça.

Mas também com continuidade da dinâmica funcional da administração, no conjunto dos meios humanos, materiais, funcionais e de organização, que permitam gerir os tribunais para cumprir e tornar efectiva a missão atribuída à justiça.

Neste sentido, a administração da justiça posiciona-se estrategicamente no cruzamento entre organização e funcionamento; e neste cruzamento existe sempre algum risco de um «conflito de territórios» entre o que releva da gestão e da administração e o que não pode deixar de ser da jurisdição.

A administração da justiça tem de se constituir como uma administração de retaguarda, dirigida por um objectivo essencial: conjugar o princípio fundamental da independência dos tribunais e dos juízes com a eficácia da organização e de funcionamento da justiça.

A interpretação e a clarificação prática do modelo da lei são essenciais para que as funções de administração e jurisdicional se não sobreponham ou, pior, conflituem, com o risco de paralisar o funcionamento geral da jurisdição.

A instituição judicial, como conjunto complexo de órgãos e agentes em permanente interacção, com diversidade de competências que se exercem através de procedimentos, supõe necessariamente a existência de estruturas de organização e administração.

A justiça independente é o pressuposto da credibilidade da lei; mesmo nas projecções utilitaristas da ciência económica e na análise económica do direito, os custos de contexto das interpretações divergentes ou imprevistas ou os limites jurisdicionais da (in)constitucionalidade, sendo mal-amados e constituindo riscos para os modelos do mercado, são, ainda assim, para os ideólogos deste campo, custos e o riscos claramente inferiores ao benefício que decorre da existência de uma instituição judiciária independente.

A independência dos magistrados no julgamento e na decisão não está isolada, porém, do funcionamento da instituição; o juiz é livre em cada decisão individual, mas também deve estar, e está sempre em maior ou menor medida, enquadrado em espaços agregados de organização.

Esta agregação, ou o nível organizacional da agregação, supõe uma compreensão mais fina da independência dos juízes e do comportamento dos agentes, fora do isolamento ou da solidão consigo mesmo, mas na interacção entre o trabalho e a função do juiz e as competências e a actividade de gestão necessária na administração da justiça.

Mas interacção sem controlo hierárquico; o controlo hierárquico da independência constituiria uma contradição nos próprios termos.

  1. O modelo de organização judicial pressupõe que seja interiorizada esta dimensão essencial, que permitirá também a prevenção de espaços artificiais de conflitualidade no governo da justiça.

O tema escolhido para este Encontro urge-nos à reflexão sobre os desafios da nova organização do sistema de justiça.

Na circunstância e no contexto do discurso recorrente sobre a organização, a eficiência e a eficácia da justiça são apresentadas como o primeiro desafio.

Enfrentar o desafio exige que sejam identificados os objectivos; a identificação dos objectivos passa por definir exactamente o que significa o jargão ou «lugar-comum» da eficiência e da eficácia.

Tarefa plena de escolhos.

A eficiência e a eficácia são conceitos importados, sendo referidos no campo de origem à ordenação e comparação entre previsões, objectivos, e resultados, considerando os meios disponíveis e utilizados, em função essencialmente da produtividade.

Mas os «conceitos nómadas» suscitam desconfiança, e não serão inteiramente prestáveis no âmbito da organização e da administração da justiça.

A eficiência e a eficácia no domínio da justiça devem ser necessariamente noções autónomas; não são categorias impostas pela razão da economia, por critérios quantitativos de produtividade medidos por instrumentos de análise económica, mas, diversamente, perspectivadas, axiológica e finalisticamente, apenas à realização das missões da justiça.

Enfrentamos, neste aspecto, uma ambiguidade essencial.

A superação da ambiguidade passa pela afirmação de uma cultura de missão, e, cedendo na terminologia, pela definição de uma estratégia do sistema judicial.

O movimento de aceleração modifica a perspectiva, o uso do tempo, o ritmo de vida, e influencia as estruturas temporais da sociedade, e também a justiça.

A aceleração social produz dimensões perceptíveis nas mudanças contemporâneas da instituição judiciária: aceleração técnica, contracção do presente, transformação dos horizontes temporais; as instituições são capturadas pela aceleração social.

Devemos estar atentos, pois a vontade de acelerar o ritmo pode ter por efeito a redução da singularidade do tratamento processual e do debate judiciário, e a busca da eficiência e da rapidez pode afectar a consideração pela qualidade e pelo conteúdo das decisões.

A estratégia emergente passa por uma reflexão prospectiva, e pela renovação do pensamento e das culturas internas, através da superação de sentimentos de individualismo e da prevenção da fragmentação.

  1. A missão da justiça não pode ser auto-definida internamente, nem é elaborada por actos de vontade dos seus agentes; a missão da justiça é atribuída e imposta como imperativo pela Constituição e pela lei.

Os objectivos estratégicos estão na Constituição e na lei.

A eficiência e a eficácia são, por isso, apenas qualificações instrumentais na definição de escolhas para alcançar os objectivos constitucionalmente definidos.

Na essência e na substância, a qualidade da justiça é o objectivo – o único objectivo – que temos de prosseguir e conseguir.

Para tanto, é nossa obrigação pensar em conjunto sobre o que deve ser a qualidade exigida à justiça, e quais os meios e os instrumentos que permitam alcançar a qualidade.

No exercício de definição de uma estratégia é necessário que exista uma entidade que possa fazer a síntese; nesta perspectiva, a «instância estratégica» só pode ser o CSM.

No rigor, a estratégia é a centralidade das escolhas; na posição e função que a Constituição lhe atribui, o CSM deve ser o verdadeiro regulador do sistema judicial, participando decisivamente na construção da qualidade da justiça.

A qualidade é da natureza da substância, e só pode ser o resultado de uma complexa agregação de factores: as escolhas que possam tornar efectivos os objectivos estratégicos definidos.

Para tanto, podemos dizer que dispomos de um quadro conceitual sedimentado para definir e avaliar a qualidade da justiça: o processo equitativo constitui, na substância e na forma, o modelo de referência da construção da qualidade.

É a síntese num conceito dos elementos que podem construir a qualidade: direito de acesso ao tribunal; tribunal independente e imparcial; discussão da causa no respeito pelos princípios fundamentais da igualdade de armas e do contraditório; decisão em prazo razoável; disponibilidade de todas as garantias de defesa; tempo necessário ao exercício dos direitos em igualdade.

Em consequência, estando os tribunais exclusivamente ao serviço da justiça e dos cidadãos, a organização tem de ser estruturada por modo a garantir a qualidade, avaliada através de factores que possam ser facilmente identificáveis e compreendidos.

– o acesso à justiça (direito ao juiz);

– as condições de acesso à justiça e a atitude dos agentes na relação com os cidadãos que recorrem ao tribunal;

– a imparcialidade e a construção das percepções sobre a imparcialidade;

– a duração do processo, a previsibilidade e a optimização do tempo judiciário, que constituem índices comuns de verificação do rigor e da qualidade da organização.

– a estabilidade e a previsibilidade das decisões que são fonte de segurança jurídica para os interessados,

– a qualidade da relação entre o juiz e as partes;

– a inteligibilidade das decisões proferidas, e a possibilidade de obter a execução, coactiva se for o caso;

-a aceitação social da justiça prestada, que resulta da legitimidade e da confiança que inspira nos cidadãos;

A qualidade da justiça deve ser avaliada num espectro amplo, integrando a montante o acesso à justiça, e a jusante a execução das decisões.

            A gestão e a administração dos tribunais devem, por isso, adoptar os métodos mais adequados para alcançar os melhores resultados – meios humanos e materiais; acompanhamento da actividade e medição da qualidade da organização; decisões atempadas; atenção especial às estruturas de apoio ao juiz e à função de julgamento.

  1. O combate pela qualidade passa pelo melhoramento do sistema judiciário no seu conjunto.

Passando dos princípios à execução, a eficácia, avaliada pelos resultados conforme os critérios do processo equitativo e o respeito pelos direitos fundamentais, vista numa perspectiva que é também económica, não pode ser exclusiva ou essencialmente gestionária e economicista.

A justiça deve ser pensada como missão e serviço público, evitando a deriva do caminho para a demagogia do discurso importado sobre a performance, eficiência e redução dos custos; a protecção dos direitos não é função da economia; será mesmo dispendiosa e, por aí, é anti-gestionária.

A administração da justiça deve também ser, tanto quanto possível, descentralizada.

Descentralizada no sentido em que são os agentes da justiça quem melhor pode administrar a justiça ao serviço dos cidadãos, no empenhamento contínuo – direi mesmo quotidiano – da melhoria da qualidade, inventando factores de modernização e catalisadores da inovação.

  1. Devemos salientar que a qualidade da justiça não pode estar referida ou ligada apenas à actuação e à qualidade de cada magistrado, no exercício individual e solitário do julgamento e da decisão.

A qualidade da justiça está também na organização.

A escala das unidades – os tribunais – da nova organização judiciária foi certamente pensada para potenciar os resultados pela técnica da concentração, limitando o isolamento dos juízes e adaptando métodos de gestão nas práticas processuais.

O estudo e a escolha, coordenada e consensual, de métodos de trabalho poderão trazer qualidade – respeitando sempre os limites e o espaço de intervenção independente do juiz.

Temos que dar como culturalmente adquirido que há matérias que são apenas do domínio da organização, prevenindo a fragmentação dos procedimentos.

Por exemplo, o estabelecimento de protocolos gerais no planeamento e previsão do tempo dos actos do processo segundo as várias categorias de processos;

 – tratamento de casos semelhantes através de procedimentos normalizados;

– fixação prévia dos calendários adequados para a sequência processual;

– coordenação do tempo dos actos, para melhor utilização dos espaços;

– unidade e equilíbrio nos critérios de agendamento;

– métodos de actuação comuns na eliminação dos tempos mortos do processo.

Todas estas são possibilidades de acção do domínio da gestão, adaptadas às especificidades do sistema de justiça.

Em outra perspectiva, mesmo no âmbito da decisão, não será ofensa ao princípio da independência a aceitação de interpretação coordenada e de práticas processuais comuns, prevenindo a fragmentação sem qualquer justificação em matérias que sejam exclusivamente instrumentais.

Devemos também estar conscientes que a monitorização da qualidade e o acompanhamento dos resultados tornam urgente uma reflexão sobre o regime de inspecções, tanto na ordenação das finalidades como nos procedimentos.

Esta é uma matéria prioritária.

  1. O discurso actual sobre a qualidade, que deveria fazer da justiça um valor de muitas faces, próxima do cidadão, com julgamentos inteligíveis e uma forma jurídica sem reparo, apela essencialmente a uma justiça rápida, com poucos custos, quase reduzido a uma única dimensão, que prima sobre todas as outras – a celeridade e a eficiência.

Dissecar conceitos como os de «objectivos estratégicos», «objectivos processuais», «indicadores de medida», sem concessões a ideologias subliminares de «parametrização» de actividade exclusivamente produtivista, impõe-nos, deste modo, uma prudente reflexão, afastando a transposição para a justiça de um modelo de gestão empresarial em regime de mercado.

Há que ter a prevenção de que os critérios de tempo e de custo, bem como o desenvolvimento da instrumentação informática e das novas tecnologias de informação e de comunicação, que não sejam pensadas apenas na justa medida da sua finalidade instrumental, podem fragilizar as identidades judiciárias.

No campo judiciário, a procura de maior rapidez e o culto da celeridade – expressão muito marcada, mas que não é da linguagem do processo equitativo – pode produzir efeitos induzidos de dessincronização, de transposição de atrasos de um sector da instituição para outro, ou a criação de desordens cronófagas.

Devemos procurar também os equilíbrios de sensibilidade entre a concentração, a especialização, as diferentes geografias e a recomposição da proximidade, e o tempo para ouvir as angústias e as esperanças dos cidadãos que pedem justiça.

O tempo e os modelos não podem apagar a narrativa simbólica da justiça.

Tudo são questões na ordem do dia do excelente programa do Encontro.

Estamos actores principais de um momento de viragem.

A urgência de reflexão e de debate sobre a reforma da organização judiciária, no início do teste de resistência da passagem do desenho à construção, faz do IX Encontro um forum organizado num tempo muito oportuno e incluído na função do CSM como instância estratégica da administração da justiça.

A bem da Justiça, ficaremos muito enriquecidos com as comunicações e com o debate e reflexões deste Encontro.

 Desejo a todos bom trabalho.

                                                                                   (António Henriques Gaspar)

12 de Setembro de 2014

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