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Discurso do Presidente do STJ na sessão solene das comemorações do Cinquentenário do Código Cívil Português

10 Mai 2016

1. No dia 10 de Maio de 1966, faz hoje precisamente 50 anos, este Salão Nobre do STJ acolheu a cerimónia solene de apresentação pública do Código Civil.
Dizem as crónicas, com a linguagem marcada da época, que a cerimónia decorreu «num ambiente de imponência e dignidade», estando presentes «as mais altas figuras da política, da magistratura, do foro e do ensino jurídico nacional», «para o que sobremaneira contribuiu a austeridade das becas dos magistrados, das togas dos advogados e dos hábitos universitários».
Assinalava-se neste espaço simbólico da justiça a solenidade e o júbilo que acompanharam o momento em que chegara a termo uma grandiosa empresa da ciência jurídica, e Portugal recebeu um novo Código Civil.
Hoje, 50 anos passados, reunimo-nos com a solenidade sóbria própria do nosso tempo para celebrar a memória, a continuidade e o futuro do Código Civil.
Comemorar 50 anos do Código Civil, é prestar homenagem à obra de juristas – professores, juízes e advogados – que projectaram, criaram e dão valor e alcance à lei, mas deverá ser sobretudo sentir a força e o vigor de uma fonte central de direito que constitui, verdadeiramente, o elemento comum da vida social.

2. Na história jurídica, a época das codificações que vem das últimas décadas do século XVIII e princípios de século XIX, teve em Portugal como grande documento o primeiro Código Civil, em 1867, acabado na sequência de um complexo processo, com tentativas e desistências desde 1822, e que vigorou durante 100 anos.
O Código Civil de 1966 integra-se também na tradição codificadora, reunindo num grande documento normativo conjuntos coerentes e metodologicamente harmoniosos da disciplina jurídica, reguladores dos momentos essenciais da ordenação da vida de todos e da construção dos equilíbrios fundamentais da sociedade.
Pode dizer-se que o Código Civil é a verdadeira constituição social, no sentido material e sociológico – são as ideias, os valores e os modos em redor dos quais a sociedade se vai construindo e se ancora.
É o instrumento fundamental da cives, na pluralidade das relações do ser social e da comunidade cívica dos indivíduos, na dimensão complexa da personalidade do ser humano, relacional e de interacção social.
As mais das vezes sem nos darmos conta, o Código Civil acompanha, silencioso, a vivência de cada um, com regulações discretas, mesmo intuitivas, sociologicamente condensadas na condição subtil de cada indivíduo como homo juridicus.
Acompanha-nos sempre nos pequenos actos de todos os dias, e está presente como um guia da liberdade aceite desde o nascimento até à morte.
E mesmo em alguns momentos, antes do nascimento e nas consequências de cada ser para além da morte; mas deixando, quase sempre, espaços para o exercício da liberdade individual e para o desenvolvimento livre da personalidade de cada um.
Foi pensado para marcar as relações jurídico-privadas do indivíduo em comunidade em era de progresso e de paz.
O Código Civil de 1966 é, por tudo, uma construção do espírito, e também um monumento dos que permanecem e fazem a história de um povo.
Como os monumentos de pedra, das artes e das letras, que nos confortam com o orgulho da História, também o Código Civil faz parte dessa obra colectiva, até na densidade do tempo em que se construíam as catedrais: os trabalhos de preparação e construção prolongaram-se por 22 anos.

3. Jean-Étienne Portalis, em 21 de Janeiro de 1801, disse no “Discurso Preliminar” do código civil francês que «os códigos dos povos fazem-se com o tempo».
O tempo das grandes codificações, de que os exemplos maiores são os códigos civis, foi o tempo da estabilidade e da construção de conjuntos normativos fortes, e de afinamento dogmático de conceitos que permitam acolher e responder às evoluções sociais.
A mediação entre os códigos e o tempo, e entre a lei e a vida tem sido em muito função da jurisprudência.
A jurisprudência revela dia a dia as novas exigências da sociedade; descobre fórmulas que verdadeiramente constituem fontes de direito; e faz viver com o impulso criador e imaginante da advocacia e o acompanhamento construtivo e o conforto da doutrina, a ideia de perfeição sonhada no movimento codificador.
A jurisprudência tem feito viver o Código Civil, lendo-o nas circunstâncias relativamente mutáveis, ambientais, culturais e sociológicas da sua aplicação.
E sem rupturas, na continuidade e permanência dos textos, vistos na singularidade dos contextos ou tocados pela riqueza material acrescentada das valorações constitucionais.
Sem pretensão de exaustivo rigor, poderemos referir, a traço largo, a jurisprudência evolutiva sobre a centralidade do núcleo dos direitos de personalidade, o reordenamento e densificação do princípio da proporcionalidade, na relação do indivíduo com a nova imensidão do espaço público, a concretização densa, social e relacional, do abuso de direito, a adaptação a outras realidades económicas da nova modernidade dos modelos essenciais do negócio jurídico; a intervenção criadora na interpretação e desenvolvimento do sentido social de aspectos extensos e relevantes do regime da responsabilidade civil; a abertura do caminho para a protecção de novos danos, reflexos, biológicos e ambientais; ou em outras dimensões, no sentido da relação do indivíduo com os bens, nas novas formas de propriedade, ou na construção de outros equilíbrios na função social da propriedade.
A jurisprudência, porém, faz a continuidade do possível; não pode acompanhar a aceleração das mutações culturais e sociológicas, que fazem rupturas que os regimes normativos têm de acompanhar.
Os grandes códigos representam, como se diz, a ideia da perfeição e da intemporalidade; mas a perfeição e a intemporalidade não significam imutabilidade.
A aceleração social e outros modos de sedimentações culturais impõem novas sintonias entre as normas e a vida; as mutações não traduzem, necessariamente, revoluções discursivas ou reformulações radicais de culturas.
Foi assim com a reforma de 1977 do direito da família, que trouxe outras formulações adaptadas da cultura e da sociologia das relações e dos modos de relação construídas pelos indivíduos relativamente a uma instituição fundamental, e com as alterações mais recentes que constituem uma segunda ruptura.
A grande reforma de 1977, que revelou, cedo, alguma descoordenação genética entre o tempo e o modo, não afectou, porém, a unidade, nem perturbou a centralidade do código na sua unidade sistémica de código da cidadania.

4. Passados 50 anos, abeiramo-nos do futuro; do futuro que não é mais do que a continuidade do presente.
Não parece hoje particularmente viva a discussão codificação-descodificação.
É certo que os novos espaços pós-territoriais podem não conviver bem com codificações marcadas pela história e território.
Mas, não obstante os movimentos de afastamento e acolhimento formal de certas matérias nos códigos civis com a emergência de novas realidades – consumidores; comércio electrónico; transacções instantâneas; construções contratuais imaginativas na finança, e várias outras – o Código Civil continuará, muito provavelmente, o arquétipo das formas de direito constante e força viva da garantia da unidade de sentido, mantendo a sua essência e fundamentos como marcadores de referência e verdadeiro pressuposto das normas de direito privado fora da codificação formal.
No fundo, ainda e sempre o documento de companhia do ser humano na sua condição de ser, de ser social e de ser cidadão.
Poderemos dizer, com o presidente da Cour de Cassation na inauguração das comemorações dos 200 anos do Código francês, que o Código Civil constitui um «livro-símbolo» – uma «lei simbólica que dirige a imaginação dos indivíduos para além das suas prescrições»; «o livro dos símbolos que nos esclarecem e nos guiam».
«Símbolo de unidade – de unidade do direito, de unidade nacional, da modernidade perpétua e do rejuvenescimento indefinido; símbolo de sabedoria, da razão e do compromisso; símbolo da qualidade de uma lei falando, tanto à razão quanto à imaginação; símbolo de institutos-farol e de princípios fortes e bandeira ao vento da História».
Durante 2016 e 2017 vamos celebrar o Código Civil como monumento da História e obra de juristas ao serviço do povo.

(António Henriques Gaspar)

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