fundo

Intervenção na tomada de posse dos Juízes de Direito, do XXX Curso de Formação de Magistrados, do Centro de Estudos Judiciários

17 Jan 2018

1. Acolho-vos, calorosamente, na Casa Maior da Justiça, neste acto em que assumem a qualidade de magistrados judiciais, afirmando solenemente o comprometimento com os ideais da Justiça.

Quero expressar-vos o meu sentimento de imensa satisfação pessoal e institucional, e a maior honra que tenho em poder testemunhar – e participar – num momento tão marcante da vossa vida.

Este é o dia inicial de um caminho que ireis caminhar, acompanhados pela satisfação pessoal da escolha e pelo imperativo de serviço que aceitastes, e guiados por um ideal que será de uma vida ao serviço da República na administração da justiça em nome do Povo.

2. O comprometimento com o exercício das funções em que ficam investidos é assumido num tempo saturado de dúvidas e inquietude, e num ambiente de persistência de várias crises que produzem desqualificações nos princípios e na estabilidade das referências.

Especialmente no direito, as consequências são devastadoras, com a tentativa de dissolução de construções seculares estruturantes da unidade e da coerência sistemática.

De expressão privilegiada do direito, a lei foi transformada em instrumento da razão técnica, teleologicamente fragmentada, menorizando a capacidade reguladora e os modelos de confiança.

Ao serviço da excepção que ficou a regra das crises, o direito tornou-se exclusivamente funcionalista – o «direito táctico» e técnico; o «direito indispensável» – sem deferência para «garantismos», pressentindo-se, por detrás, a animosidade em relação aos controlos judiciais.

Neste horizonte sombrio, as incertezas vão ser a vossa companhia e um imenso desafio.

A mudança da natureza da democracia, a tentação plebiscitária directa através da imagem, e a tirania da manipulação com a passagem do mundo do texto para o mundo da imagem, a leveza e a velocidade de circulação da informação, desacreditam e fragilizam insuportavelmente as mediações institucionais e políticas tradicionais.

As instituições judiciais, pela dificuldade e assimetria do contraditório, sofrem o desgaste do enfraquecimento, porventura mais fortemente que outras, num tempo de mediações de facto, directas e agressivas, que agem num registo em que a polémica substitui a apreciação dos factos.

3. Esta é, por isso, Senhoras e Senhores juízes, uma época de transformações profundas, que é propícia a aceitar programas políticos radicais, com risco do enfraquecimento dos princípios do Estado de direito.

Assistimos, sem o cuidado da atenção, tolhida pela anestesia ambiental, à menorização, quando não mesmo uma espécie de hipnose, na aceitação da auto-mutilação de direitos, e vai ficando, mansamente, mais frágil a conjugação dos elementos constitutivos das vivências democráticas.

A anomia em relação aos direitos fundamentais é o sinal de alarme do risco de fadiga da democracia.

Por dever de missão, temos de tomar nas mãos a defesa da substância da cidadania, participando, no cumprimento das atribuições que a República nos confia, na construção quotidiana, mas sempre inacabada, dos valores do Estado de direito.

4. Na híper-complexidade do tempo que a história nos reservou, a formação que tiveram, e a que acederam por elevadas qualidades e méritos, armou-vos com os instrumentos necessários para enfrentar e superar os desafios que vos esperam.

Vão enfrentar esses desafios com confiança, conscientes das exigências, mas sem receio do futuro.

Não tenhais medo, e afirmem em cada dia a coragem serena própria dos espíritos fortes.

Permiti-me, por isso, nesta ocasião, que partilhe com todos vós algumas reflexões, porventura fora do texto, mas que a condição de uma vida inteira ao serviço da Justiça me autorizará a ousar fazer.

Partam da assumpção intelectual de um postulado que devem ter sempre presente.

A condição de magistrado judicial não constitui uma profissão, e muito menos uma «carreira»; bem diversamente, tem de ser sentida como um cursus honorum, ou o caminho das honras, em que cada um assume uma missão de vida, exercendo as funções para cumprir a obrigação de justiça que devemos aos cidadãos.

A Constituição e a lei conferem-nos o poder necessário para esse exercício; mas este poder e legitimidade são apenas formais, e o poder, passando das formas à substância, é dever, ou poder-dever, que é uma forma mais intensa de dever.

Devemos, então, ser cautelosos, e não confundir poder com autoridade – autoridade, claro, no sentido material de autorictas.

Autorictas é agir para garantir a legitimidade e a substância da aceitação da acção.

É a qualificação da acção fundada na capacidade, no conhecimento e no saber, na autoridade intelectual, na prudência, na distância temporal necessária à reflexão, na alteridade, na atenção de ouvidor e na perspicácia para compreender cada pessoa que pede e espera justiça.

Em democracia, a autorictas, que deve ser reconhecida com aptidão para tomar decisões justas, tem de ser conquistada na acção de todos os dias e nunca está adquirida: será o resultado de uma aprendizagem constante.

A auctoritas é o contrário do exercício cru de um poder ou de um acto de autoridade.

Tenham muita prevenção contra o demónio do «autoritarismo», e bem presente a consciência dos limites do poder jurisdicional.

E deixem que vos peça também: cuidem da forma para permitir a comunicação e a compreensão das vossas decisões pelos destinatários; cultivem a simplicidade e a «arte luminosa da síntese».

5. No exercício das competências jurisdicionais vão agir com independência, que é condição constitucional e estatutária fundamental.

Mas independência são tanto os textos como o conceito.

A independência não pode ser considerada como um adereço que se exibe, mas interiorizada como valor fundamental, que para os magistrados é um dever e para os cidadãos um direito.

A independência supõe a conjugação de um conjunto de condições que são essenciais para o exercício de funções; umas, com fonte na Constituição e na lei; outras, no entanto, adquiridas e interiorizadas, intelectual e emocionalmente.

Verdadeiramente, não pode ser separada da autorictas: conhecimento, sabedoria («sagesse»), prudência, alteridade, consciência dos limites do poder jurisdicional, sensibilidade e, seja a categoria o que for e que cada um cultivará na observação atenta das interacções, bom senso.

O conhecimento será construído pelo cumprimento do dever de actualização do saber, intuição e cultura; cultura, que não será adição livresca de saberes parcelares, mas a capacidade para compreender e interpretar os contextos e as dinâmicas humanas, sociais, políticas e económicas em que as funções são exercidas.

A jurisprudência é a ponte, assente nos princípios, entre a lei e a vida; é, por isso, necessária a interiorização axiológica dos princípios, e o conhecimento da lei e da vida.

A independência é, por sobre tudo, ter consciência de si próprio; é um estado de alma e de espírito e uma atitude do pensamento interior de cada um sobre si mesmo.

Mas o conhecimento é sempre limitado e incompleto; tereis a humildade intelectual para reconhecer que a faculdade de julgar não está subtraída à possibilidade de erros e contradições.

E a atenção na interpretação da «regra de ouro»: a capacidade de nos imaginarmos na posição do outro.

Nas leituras que nos vão acompanhando, e com que tentamos confortar as nossas supostas certezas e testar as nossas incertezas, guardei uma reflexão de Pierre Truche, que foi presidente da Cour de Cassation, que partilho convosco a propósito da independência – e que é um exercício de humildade intelectual.

O juiz, «mais do que proclamar constantemente a independência como se fora um exorcismo», deve «ter a lucidez sobre as suas próprias dependências; em relação a si mesmo; em relação às suas convicções pessoais que, tornando-se pré-juízos não permitem julgar; em relação ao seu próprio saber cujas insuficiências podem limitar a compreensão; em relação a todos os que a montante prepararam o processo e a jusante executam a decisão, ou que, em redor, invocam a dimensão política, ou a pretexto do direito à informação, pretendem influenciar».

No meio desta colisão de condições, o juiz, «deve fazer a sua escolha na quietude do seu coração e na tranquilidade do seu espírito».

Mas tranquilidade não pode ser rotina, nem a forma de estar a que ironicamente se chama «esplêndido» isolamento.

A rotina é inimiga da qualidade e da liberdade, e ao contrário de ideias feitas, o «solipsismo» no interior da jurisdição, ao limitar a abertura à discussão interna e a pluralidade de referências, pode prejudicar as condições ambientais adequadas ao exercício da independência.

6. Senhoras e Senhores Juízes:

É vosso o futuro da Justiça.

A responsabilidade de construir o futuro fica bem entregue no vosso empenhamento, espírito de serviço, dedicação e competência.

Estou com todos vós, solidário e confortado na esperança do êxito de cada um, que será o êxito de todos a bem dos cidadãos e da Justiça portuguesa.

Neste tempo de contingências e de desesperança, vão encontrar certamente muitas pedras no caminho.

Direis, então, como Ary dos Santos: «vamos saltá-las às pedras que nos saem ao caminho»!

Façam o favor de ser felizes!

(António Henriques Gaspar)

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