Neste dia celebramos o acabamento do plano imaginado há 22 anos por um grupo de juízes, que tiveram um sonho, transformaram-no em ideia, lançaram pacientemente o trabalho de concretização e legaram a obra à responsabilidade do futuro.
Esse futuro que sonharam é hoje.
É a Casa do Juiz, que simbolicamente alcança hoje a completude sonhada por aqueles que a quiseram fazer.
Tenho bem presentes os visionários, empreendedores e corajosos, de há 22 anos, bem como a Direcção da Associação Sindical que levou a proposta à aprovação da Assembleia-Geral de 23 de Março de 1996.
Todos ficam para sempre na nossa memória colectiva.
Mas de todos, permitam-me que recorde com muita saudade Armando Pinto Bastos, que conheci nos anos 60 de séc. passado, nos meus começos como estudante de direito.
Pinto Bastos foi para mim o modelo de juiz, exemplo para gerações de juízes, disponível, solidário, combatente por princípios, intenso na defesa e na consolidação dos valores democráticos da justiça e da construção da independência, empenhado na defesa dos mais desfavorecidos, de excelsa bondade e, relevem-me a nota pessoal, carinhosamente meu Amigo.
A organização da solidariedade é tarefa fundamental do Estado inscrita na Constituição, mas não se esgota nas instituições do Estado; a sociedade activa e aberta, livre, justa e solidária, deve participar e ser co-responsável na promoção das formas de solidariedade social.
A concretização do direito à segurança social deve fazer-se no cumprimento da Constituição através de políticas públicas, orientadas pelo princípio da solidariedade social e na co-responsabilidade social.
Na finalidade com que foi pensada e construída, a Casa do Juiz concretiza o direito à segurança social como imposição da democracia social e participativa, descentralizada e fundada na solidariedade.
Na época em que se pressentia a aproximação do ritmo inesperado da aceleração das transformações económicas e sociais, os juízes que pensaram esta obra tiveram a rara intuição dos tempos que viriam e leram esses sinais antes do tempo.
Pensaram, como referem os textos do tempo fundador, numa «casa de repouso para juízes, em especial para acolher aqueles que no final das suas vidas, na sua velhice, não tivessem quem olhasse por eles», como recorda o desembargador Alberto Ruço no livro que escreveu com afecto («A casa do Juiz- 20 anos»), que fica como memória para as gerações futuras.
Um acolhimento para os juízes que na velhice não tivessem quem «olhasse por eles».
Neste sentimento está, não escrito, todo um programa que tem, no fundo, uma marca sobre a condição de juiz.
A condição de juiz – em todos os momentos da vida.
As palavras (Mateus e Lucas) recordam que quando se julga é necessário aceitar ser julgado.
Nesta passagem bíblica está concentrada toda a complexidade do acto de jugar e da missão do juiz, que atravessa a filosofia e todas as religiões, e da severidade histórica da opinião pública em relação aos magistrados.
Serge Portelli, juiz presidente de Secção na Cour d’Appel de Versailles, partilha no livro «Juger» reflexões impetrantes sobre a impossibilidade de ser juiz.
Impossibilidade, é óbvio, numa formulação retórica da ideia.
Julgar – diz – não é fonte de glória, mas de humildade permanente, com imperiosa exigência de modéstia e de dúvida.
Aceitar ser juiz é fazer da missão impossível o cumprimento da obrigação possível de justiça, que é executada sob o olhar e a vigilância constantes do povo inquieto desta sua delegação, longe de qualquer soberba ou altivez, sem pompas, medalhas ou aparato.
Julgar é afastar o acessório e agarrar o essencial; a arte de julgar (se é que pode haver uma arte de julgar) consiste em sancionar sem excluir, proteger sem depreciar e compartilhar com a reserva nas emoções: é proteger os valores que forjam a acção e em que se funda todo o exercício da função.
O tribunal está, hoje, em simbiose com a sociedade onde se insere, que o atravessa, ou mesmo que, por vezes, o submerge.
Impossibilidade de ser juiz: este exercício que interpela a sociedade encontra sempre desconfiança e mesmo hostilidade.
É a permanente interrogação, que refere Pierre Truche, da sociedade sobre o juiz e sobre quem é o juiz – experimentado, suspeito ou rejeitado, mas que tem o poder de intervir na vida dos seus concidadãos.
Tomemos estas breves considerações apenas como modelo de reflexão e análise, conscientes de que ao longo da História, atravessando e tempo, as culturas e as religiões, sempre assim foi e com certeza assim continuará a ser.
A reflexão não será inteiramente deslocada ou irrelevante no sentido e no contexto da nossa celebração de hoje.
Os juízes enfrentam, com a determinação e a sobriedade da sua condição, mas com a firmeza do sentido da missão e a distância atenta do mundo circundante, as circunstâncias da história e da vida que têm formado a centralidade do seu lugar na defesa dos direitos e das liberdades dos cidadãos.
Mas a complexidade da missão invulgar conferida a mulheres e homens comuns, em observação permanente, as condições de exercício e a reserva adensam a solidão que se agrava nas fases mais avançadas da vida.
Podemos sentir, nos testemunhos que deixaram, que esteve subliminar na generosidade e na coragem dos fundadores que idealizaram a utopia desta Casa a convicção íntima da singularidade da posição do juiz na vida, na sociedade, na relação como os outros e consigo mesmo nas suas próprias circunstâncias.
É o que leio na revelação do sonho de Pinto Bastos em Março de 1996 – o «sonho lindo», como escreveu: um modelo em que estivessem presentes as condições psíquicas e espirituais do acolhimento, a qualidade do ambiente de convivência, para preservar no inverno da vida as condições de bem-estar, evitar o isolamento e a solidão, num espaço adequado à dignidade da condição de juiz.
Sentimos todos, com certeza, uma imensa satisfação interior pelo cumprimento deste projecto, que dedico à memória dos que inventaram o sonho e já partiram.
E na continuidade do tempo e das instituições, agradeço à actual Direcção – e destaco, por justiça, os Desembargadores Luís de Azevedo Mendes, António Barateiro, Jorge Loureiro, Alberto Ruço e Cecília Agante, bem como todas as anteriores Direcções – a vontade, o trabalho e inteligência, a dedicação extrema e a superação dos escolhos, que fizeram possível toda esta obra, cumprindo com entusiasmo contagiante o sonho dos fundadores.
A Casa do Juiz é o verso do ‘Mar Português’, de Pessoa, realizado: «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce» – o «sonho lindo» de Pinto Bastos.
Bem Hajam por toda a vossa dedicação, com a única recompensa da alegria interior.
Felicitemo-los e felicitemo-nos!
1 de Julho de 2018
(António Henriques Gaspar)
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